sábado, 30 de março de 2013

(Erya) Victor


Uma antiga balada enchia a noite de Erya.
               O bardo Dale cantava como nenhum outro homem da cidade, quiçá de todo reino. Era um homem de trinta anos, tinha cabelos longos e barba bem aparada, olhos cinzentos e inteligentes, e usava roupas esfarrapadas de viajante. Tocava agora a triste Lágrimas de Nael, dedilhando firme e habilmente as cordas da magnífica harpa com cordas douradas. “Foi feita pelo próprio Ralien, esta maravilha”, Dale os garantira, no início da apresentação. A canção era suave, e dessa maneira escapava por seus lábios. Duas das filhas de Lorde Grantt fungavam e secavam os olhos com lenços, pela triste composição:

No dia em que Loriel partiu
em seu magnífico garrano,
a primeira lágrima caiu
dos olhos de Nael.
dos olhos de Nael.

O sol não mais brilhou,
nem a chuva molhou,
nem as canções mais chegaram
ao coração de Nael.
ao coração de Nael. 

E um dia, se ele voltar, 
Ela não mais estará lá,
Porque se foi, ela, também
Para lá do encontro de Loriel.
Para lá do encontro de Loriel.

               Quando a última corda deixou de vibrar, Dale ganhou aplausos de todos que rodeavam a fogueira.
               - A alvorada logo chegará. As meninas logo deverão estar em seus aposentos – o Primeiro Protetor Victor recordou-os. - As ordens de Lorde Grant são para que estejamos no castelo antes do alvorecer.
               - Temo que assim seja – disse Dale. - Conheci Lorde Grant da última vez que estive em Erya. Se bem que não passava de um simples rapaz, recém-admitido na cavalaria, na época, pelo que se dizia. Mas isso não o impediu de causar-me o trauma que me casou. Lorde Huster, Senhor das Montanhas, contratou-me para que tocasse para os cavaleiros que partiriam para a batalha na manhã seguinte, na Guerra da Praia de Alla. Ferrick Grant, um cavaleiro aleatório e sem pouca notoriedade, quando soube que seria eu o bardo da noite, sem que nenhum dos outros que passavam visse, desembainhou a espada silenciosamente, apertou-me contra uma parede escura por trás de uma porta próxima à entrada do salão onde aconteceriam as despedidas, e sussurrou-me, ferozmente: “Quero músicas com morte. Nada de princesinhas ou príncipes encantados. Quero músicas com morte, sangue e entranhas.” – Dale imitou-o, com uma voz rouca e zombeteira. - E eu, com medo de ter o pescoço cortado, tudo o que pude fazer foi tocar cinqüenta canções sobre a Guerra dos Corvos. - As gargalhadas foram histéricas e quase não cessaram. Até duas das filhas de Lorde Grant divertiram-se com a estória. – Portanto, é melhor que se vão. Não creio que o tempo tenha deixado Lorde Grant mais simpático. – As gargalhadas voltaram a ressoar, enquanto os cavaleiros da escolta, as meninas e o Primeiro Protetor levantavam-se e cumprimentavam os viajantes, que se instalavam no acampamento.
               Dale levantou-se do banco pequeno de madeira sem encosto, no qual havia se sentado toda a noite, escolhido por ele mesmo, pois, segundo o próprio, o permitia completa mobilidade dos dedos pelas cordas da harpa, envolveu o instrumento com uma grande bolsa de couro e dirigiu-se a Victor e às filhas de Lorde Grant. O resto dos homens e mulheres comuns regressava às suas tendas, erguidas ao pé da muralha, depois de, um por um, haverem feito suas reverencias.
               - Não sabem da felicidade que sinto por aprazer tão belas moças com minhas simples canções – Dale disse galantemente, ao aproximar-se delas. Mariel corou e Alianne sorriu envergonhadamente; Rhaela continuou inexpressiva, como sempre. – Pena que um bardo leva uma vida tão árdua quanto à de um viajante. E temo que haja chegado a hora de partir.
               - Por que não fica um pouco mais? – objetivou Alianne, com um sorriso triste. – Se falarmos com o pai, é certo que encontrará um quarto grande e arejado para o senhor, no castelo. – A moça era de uma beleza inigualável. Tinha longos cabelos loiros e um belo par de olhos azuis. – O pai não diria não a mim.
               - Ah, menina... menina... Não sou nenhum senhor. E já vivi o bastante para saber que um bardo não tem lugar num castelo. Não em Erya. E não nas propriedades de Lorde Grant.
               - Mas você poderá ter! – interveio a pequena Mariel. – Contei ontem nove aniversários. O pai disse-me que poderia escolher o que quisesse de toda Erya, e ele me presentearia. Não escolhi nada... ainda. Poderia pedir que se tornasse o bardo do castelo... e pediria também uma grande mansão, onde o senhor viveria. Uma grande mansão no topo do monte Pardal. Seria azul – os pequenos olhos azuis cintilaram de animação. – Ou da cor que o senhor quisesse. Venha, venha conosco. – Mariel segurou a mão do bardo, tencionando conduzi-lo à porta levadiça, que estava erguida a cem metros de onde estavam. Dale, sem soltar a pequena mão da menina, ajoelhou-se e olhou-a nos olhos, piedosa e graciosamente. O fogo de um archote que brilhava em sua face destacava a profundidade dos olhos cinzentos.
               - Temo que um bardo não possa viver muito mais do que poucos dias em um só lugar. Precisamos de paisagens novas. Precisamos ver tanto a neve quanto o sol escaldante. Encontrar tanto camponeses quanto lordes. Conhecer estórias tristes e felizes. Só assim ganhamos algo chamado inspiração. É dessa maneira que conseguimos escrever nossas canções. Um bardo é como um pássaro. Até mesmo uma mansão seria uma gaiola para mim. Mas, em compensação, quando regressar algum dia, terei um novo e mais rico repertório, e prometo dedicar todas as canções à senhorita.
               - Mas...
               - É hora de irmos, senhoritas – Victor interrompeu-a. – Em menos de duas horas chega o alvor, precisamos regressar imediatamente ao castelo. Vocês três – falou para os cavaleiros. - Podem dar início à escolta. Os acompanharei em um minuto. Ei, vocês! – gritou para dois meninos descalços e meio sujos que jogavam senet, próximos a uma das incontáveis cabanas, que se estendiam até onde se podia ver a muralha da cidade. – Darei uma moeda para ambos, se vigiarem meu cavalo. – Os dois meninos anuíram e levaram o tabuleiro mais para perto do animal.
               - Preciso falar com você, Dale.
               Victor e Dale afastaram-se do acampamento, enquanto as meninas eram erguidas sobre seus pôneis. A madrugada, longe do acampamento, estava escura e silenciosa. O vento uivava dentre as árvores. Quando haviam ido longe o bastante, Victor começou:
               - Ir embora? Pensei que tivesse vindo com os viajantes. Eles, pelo menos, esperarão o amanhecer. Talvez mais um dia, ou dois – Victor estava meio surpreso.
               - É verdade que cheguei com eles. Mas há assuntos importantes chamando por mim em outro lugar. Preciso estar lá tão cedo quanto puder. Uma caravana de viajantes é demasiadamente lenta, e não fariam nada além de atrapalhar. Além de que meu destino encontra-se para lá de Pedra do Rei, e em outra direção.
               - Para onde tencionas em ir, agora?
               - Penso sobre. Talvez para Barbor... Grande Ilha... Ainda não sei ao certo.
               - Toma – Victor tirou duas moedas de um bolso. – O pagamento de Lorde Grant pela apresentação.
               - Maldito velho – disse Dale, carrancudo. – Deixei claro que seria cortesia. Se bem que prata a mais nunca é ruim.
               - Tem o suficiente para voltar a sair de Erya? – Victor perguntou-o, preocupadamente.
               - E algum dia já me faltou moedas? – Dale respondeu, com um sorriso irônico. – São difíceis de achar, mas os bardos sempre dão um jeito – disse, balançando as duas moedas de prata de uma mão para a outra. Victor abraçou-o firmemente.
               - Se encontrar o tio Josser, diga-o que sinto saudades.
               - Encontrar meu pai... Quase tão difícil quanto encontrar moedas.
               Os dois riram, até que Victor cessou, dizendo:
               - As idéias das meninas não eram assim tão absurdas. Podemos conseguir um aposento para que passe a noite. Não mais que isso. É bem verdade que Lorde Grant não nutre muita simpatia por cantores, harpista bardos e afins. Mas, como a princesa Alianne lhe disse, ele faz a vontade das filhas. – Disse Victor, com uma mão no ombro do primo.
               - No dia em que eu aceitar estadia no castelo de Ferrick Grant, pode tirar-me a harpa, porque terei enlouquecido, e não mais saberei se é usada para tocar canções ou para enforcá-lo com as cordas – disse Dale, com um sorriso amargo. – Se bem que, mesmo sano, poderia usar as cordas para esse outro fim. 
               - Bonita amizade, a que nutres por meu senhor – riu Victor. – Ofereceu-se para tocar para suas filhas, se não estou louco.
               - E por que acha que assim o fiz? – perguntou Dale. - Pensa que a história sobre aquela noite, quinze anos atrás, era falsa? Queria que fosse. Tremo quando toco canções bonitas, nessas ocasiões, até hoje – gargalhou Dale. – E nada me aprazeria mais do que a oportunidade de tocar, contra seu ódio, para suas pequenas donzelas... Além de que sabia que o Lorde tem orgulho de ferro... – Levantou as três moedas de prata sobre uma mão em formato de cálice, com um sorriso brincalhão no rosto.
               - Eu bem que deveria ter imaginado – concluiu Victor, com não mais que uma sugestão de sorriso no rosto.
               - É minha hora de ir – anunciou Dale.
               - Devo acompanhar a escolta, também. Cuide-se na estrada, Dale.
               - Cuide-se no castelo de Lorde Grant, primo. – terminou o bardo, virando-se com a bolsa de couro em que estava a harpa presa às costas, caminhando rumo à escuridão do Bosque dos Pardais.
               Victor retornou à luz do acampamento a passos largos. Seu garrano estava atado onde deixara, no suporte de um archote, com dois meninos o vigiando. Jogou uma moeda para um deles, que logo foi atacado pelo outro, derrubando o tabuleiro e acabando com a partida de senet. Desatou o garrano e montou, avançando a trote, rumo à porta levadiça. Em breves minutos, acompanhou a escolta das três meninas, composta por três dos cavaleiros menos importantes do castelo, que já se dirigiam às barracas desmontadas da feira de Harla. Joel Tritão, o esguio e abobalhado cavaleiro de vinte e dois anos que jurava ter um dia visto uma sereia com os próprios olhos, quando viajava por Rekabra, que agora transportava o archote, por ser a noite desprovida de luar; Wett, o recém-armado cavaleiro de dezesseis anos, ainda sem sinal de pelos no rosto; e o inseparável homem da princesa Rhaela, Kitton, um misterioso cavaleiro encapuzado que era como sua sombra.
               - Sobre o quê falava com o bardo? – perguntou Joel Tritão, em meio a um bocejo tedioso.
               - Dale é meu primo. Queria saber para onde irá a seguir. – Victor respondeu-o.
               O enorme castelo de Lorde Grant, chamado Crista do Galo, erguia-se por sobre a amigável colina chamada Ovo, no limite da cidade de Harla. O declive começava onde o pequeno mercado terminava e desatavam a surgir as estalagens, no decorrer das ladeiras. O castelo era sombrio quando visto à noite, principalmente em noites sem lua, como era aquela. Viam-se três torres de pedra negra com topo branco, todas de tamanhos diferentes, que saíam de um imenso edifício inferior, com incontáveis janelas quadradas de vidro amarelo, na parte da frente. À medida que se aproximavam do começo do declive que dava início ao Ovo, o castelo ficava mais colossal. Além das três torres negras desiguais, não viam, dali, os incontáveis portões e as incontáveis salas que se estendiam e se entrelaçavam como teias de aranha, devido à grande muralha que se erguia no topo da colina e se estendia ao redor de todo o edifício.
               - Poderia casar-me com Dale – disse Alianne, suspirando, enquanto deixavam a praça da feira para trás e começavam a sutil subida.
               - Dale é um imbecil – objetivou Wett, visivelmente enciumado.  
               - Com você é que não casarei. – Alianne fechou a cara, pondo seu pônei cinzento, o maior entre os três das irmãs, mais adiante.
               - Estamos em uma escolta, Wett – disse Joel. – Não é hora para romances infantis. Sem ofensas à senhora Alianne.
               - Não me ofendi – respondeu Alianne, que ia à frente, desdenhosamente.
               - Se ele vivesse no castelo... – disse a pequena Mariel, encantada. – Pediria que cantasse para mim todos os dias.
               - Há outros bardos, minha senhora – Victor tentou consolá-la.
               - Mas há um só Dale. É Dale que quero – rebateu a menina, tristemente.
               Rhaela observava as irmãs e o caminho como se pensasse em algo distante. Não dizia nada. Nunca dizia nada. Tinha onze anos e cabelos de um loiro tão pálido, que pareciam brancos. Era magra, tinha grandes olhos azuis e a pele branca como leite. Kitton estava, como sempre, ao seu lado, tão silencioso quanto ela. A menina não falava, e dificilmente sorria. Enquanto Mariel e Alianne choravam e suspiravam com as canções de Dale, Rhaela olhava para outro lado, pedindo com os olhos para que seu Cavaleiro Juramentado a tirasse dali. A menina de onze anos era obrigada a acompanhar as irmãs em todas as atividades de senhora às quais eram submetidas, mesmo não nutrindo nenhuma simpatia por nenhuma delas; ia por ordens do senhor seu pai. Victor percebera havia tempos: ela não gostava de costurar, de cantar, nem mesmo de canções. Gostava de livros. Havia uma pilha deles em seu quarto.
               - Traga-as de volta ao castelo antes da primeira luz do dia – rosnara-lhe Lorde Grant, antes de haverem cruzado as muralhas da cidade – ou corto a sua cabeça e a cabeça do bardo. 
               Por sorte, estavam na muralha exterior da Crista do Galo uma hora antes da alvorada.
               Os viajantes haviam chegado à tarde do dia anterior. Eram, em sua maioria, de Eller, almejando alcançar Pedra do Rei, onde aconteceria, nos dias seguintes, o tradicional Festival de Primavera. Lorde Grant fora avisado da chegada dos viajantes e permitira que montassem o acampamento de quase três mil pessoas à beira da muralha. Victor surpreendeu-se quando soube, quando levava ao Lorde um relatório sobre as atividades semanais das filhas do senhor, através de um dos guardas da muralha que trazia informações sobre os acampados, que o primo Dale estava entre eles.
                - Duzentos e trinta e oito homens, cento e duas mulheres – dissera o guarda, por baixo do elmo. – e dezesseis crianças. Estão em rumo a Pedra do Rei. O Festival de Primavera, dizem eles, meu senhor.
               - Maldito Thedor. Quando pensei que um novo reinado significaria abolição dessas tradições podres – dissera lorde Grant, cuspindo, carrancudo. – O que mais nós temos?
               - Um bardo. Chama-se Dale Witegar – continuara o guarda. - Quer cantar para suas filhas, se lhe aprouver.
               - Witegar? – perguntara lorde Grantt. – Por acaso o homem lhe é família, Victor?
               - Creio que se trate de um de meus primos, meu lorde – respondera-o Victor.
               - E quanto cobra esse bardo? – perguntara o Lorde, virando-se para o guarda, interessado. Quando o assunto era agradar às filhas, não havia muito que Ferrick Grantt não fizesse. E bem ele sabia o quanto as filhas (ao menos duas delas) amavam os cantores.
               - Não cobra nada, meu Lorde. Diz que cantará para elas por pura cortesia.
               - Conversa fiada – garantira Lorde Grantt. – Todo homem quer ouro. Dê-lhe duas moedas de prata. Quando ele deseja cantar?
               - Depois de meia-noite, se lhe aprouver. No acampamento.  
               - Um pouco tarde – disse num tom pensativo. Depois de pensar por um momento, finalmente decidira-se: - Victor, quero que organize cavaleiros para a escolta das meninas. Ao menos dois. Bem sei que o terceiro será o maldito fantasma de Rhaela. O homem me assusta... À sombra da muralha – prosseguiu. - Já há homens sob meu comando. Isso deverá bastar.
               Victor não via Dale havia anos. Sentiu-se feliz por tê-lo visto depois de tanto tempo.
               Depois de longos minutos de subida ao Ovo, chegaram finalmente à Crista do Galo. As meninas foram levadas aos seus aposentos, nos altos andares do castelo, uma por vez. Depois do fim da escolta, Victor dispensou os cavaleiros, com exceção de Kitton, que pediu, com sua voz colérica, para continuar a guardar a pequena Rhaela, como fazia, às vezes.
               Victor seguiu para seus aposentos, lavou-se e dormiu.
               Sonhou um sonho estranho. Nele, Dale cantava e harpejava na escura Floresta dos Pardais, na noite sem luar, mais escura e impiedosa que estivera, à sombra de uma pequena fogueira, enquanto lobos uivavam a sua volta, sons tristes e agudos. Victor estava lá, olhando. Via tudo com clareza, mas sentia como se não fosse ele mesmo. Ouvia a canção que o primo cantava.
               Os uivos dos lobos tornaram-se de melancólicos a insanos em poucos segundos. Uma súbita névoa encheu o ar de repente. Uma névoa, Victor bem sabia, que cheirava a frio. Um cheiro terrivelmente triste. Uma sombra sem formato irrompeu da escuridão como um terrível espectro negro, e atacou Dale, enrolando-se ao longo de seu corpo. Victor tentou mover-se para ajudar, mas não conseguia se mover. Não conseguia gritar. Não podia fazer nada, enquanto a criatura negra como o breu se contorcia e esmagava o pescoço do primo, que se esforçava para se livrar ou respirar. A sombra apenas largou o corpo do bardo quando seu rosto estava escuro e sem vida, e avançou, por cima das copas das árvores, rumo ao acampamento.                  
               Victor assistia a tudo como se estivesse em todos os lugares, vendo tudo o que acontecia. A sombra matou os últimos dois viajantes que estavam fora das tendas: os meninos que jogavam senet em frente ao acampamento, com golpes quase rápidos demais para serem vistos ou ouvidos. Seguiu em direção à entrada da cidade, em grande velocidade. Cruzou a muralha exterior por cima da guarita, penetrando na cidade, que dormia. Subiu o Ovo como se deslizasse através de seus declives e passou por cima da muralha do castelo. Na Crista do Galo, derrubou os guardas de uma das entradas dos fundos, e subiu as escadas, parecendo saber previamente para onde deveria se dirigir. Estava agora no corredor do quarto das meninas, tudo numa agonia desesperada. Dirigiu-se ao quarto do meio, o de Rhaela. Kitton tentou atacar à sombra com a espada, mas ela jogou-o facilmente contra a parede e passou através da porta.
               Então Victor ouviu um grito.
               Acordou-se assustado. O grito vinha tênue do andar de cima. O andar do quarto das meninas, ele pensou, temeroso. Teria seu sonho sido real? A sombra teria mesmo matado seu primo Dale e atacado a princesa Rhaela? Estava apenas estarrecido pelo pesadelo? Sem muito tempo para pensar, levantou-se aos pulos, procurando o cinto da espada. Os dedos róseos de aurora já se erguiam nos céus, pelo que via por sua janela. Vestiu a cota de malha em rápidos movimentos e saiu do quarto às pressas, correndo em direção ao fim do corredor, onde ficava a escada em espiral que levava ao andar superior. Subiu os degraus de três em três, com o coração perto de sair pela boca, pelo temor que tinha do que poderia encontrar mais acima. Mas ele era o Primeiro Protetor das três meninas.
               No dia em que ganhara o grau de Primeiro Protetor das herdeiras de Lorde Grantt, prometera, perante os deuses e o próprio lorde, protegê-las e guardá-las com a própria vida, em qualquer que fosse a circunstância. E era isso o que faria. Não teria medo.
               Mais um grito estridente ressoou, mais escandaloso que o primeiro. Rhaela? Perguntou-se, apertando o passo. Depois de percorrer os três corredores em zigue zague, finalmente estava no corredor perpendicular aos quartos delas. Antes de voltar-se para secção dos quartos, desembainhou a espada, num rápido movimento. Victor ouviu dos andares inferiores a movimentação dos guardas, provavelmente por terem ouvido o segundo - e mais forte - grito.
               Tomou fôlego e virou o corredor. Kitton estava jogado ao chão. O grande cavaleiro estava estendido, seu corpo parecia não mais ter vida. A porta do quarto de Rhaela estava entreaberta. Alianne vestia trajes de dormir, e lamentava-se debilmente da porta de seu quarto, dez metros à frente, tremendo tanto quanto chorava, com o semblante de alguém que acabara de despertar-se de um pesadelo e vira um terrível fantasma. Não, não pode ser real, Victor pensou.
               - No quarto de Rhaela... – disse Aliane. Apontava com uma mão trêmula para a porta entreaberta; sua voz saiu com dificuldade, devido aos soluços. – Tem de salvá-la. Tem de salvar Rhaela.  – A menina vacilou e desmaiou por sobre o tapete que cobria toda a parte central do corredor. Rhaela está sozinha no quarto. Precisa de você, uma voz ecoou dentro de sua cabeça. É o meu dever, pensou amargamente. Jurei protegê-la com a vida.
               Ouviu passos atrás de si. Os soldados estão aqui. Então entrou
num cego e destemido movimento, de espada erguida, no quarto da menina. A ainda fraca luz solar entrava pelas grandes janelas que se estendiam por todo o corredor, do lado oposto ao lado dos quartos. A luz cobria uma pequena do aposento, até a metade, onde a porta entreaberta não a vedava. Rhaela estava encolhida em uma parede de frente à porta da entrada, meio iluminada pela luz do sol. Em silêncio. Tão pequena. Também não chorava. Tremia. Tudo o que fazia era tremer.
               Victor abriu os lábios para perguntar o que havia acontecido, mas antes que as palavras se atrevessem a sair, a porta atrás de si fechou-se com um sonoro baque. Suas entranhas transformaram-se em água. Ficou imóvel por alguns segundos, no quarto quase completamente escuro, enquanto, lá fora, os guardas, que acabavam de chegar, às pressas, lutavam para abrir a porta que se fechara como que por vontade própria. O quarto era apenas iluminado pela pouca luz do amanhecer, que entrava por debaixo porta. 
               - Senhorita, acalme-se – ele tentou tranqüilizá-la. – Logo sairemos daqui. – Era no que gostaria de acreditar. Covarde, a voz de seu pai, há muito morto, ressoou dentro de sua cabeça. Não serve nem para matar porcos... nem para matar porcos. Sentiu o gosto da bílis na boca. Não, esse foi outro homem, tentou convencer-se.   
               Seus olhos, alguns segundos depois, haviam se acostumado parcialmente à escuridão. Então, conseguiu ver pusilanimemente o pequeno corpo encolhido contra a parede, que tremia com mais intensidade que antes. Victor aproximou-se e agachou, tocando-lhe o rosto que ardia de febre.
               - Acalme-se, minha senhora, está tudo bem. O que lhe aconteceu? – Não esperava resposta, mas talvez ela lhe mostrasse de alguma forma.
               A pequena e trêmula mão de Rhaela fez um lento movimento para o ar, com os grandes olhos azuis, agora negros devido à escuridão, esbugalhados de medo e um pequeno dedo indicador apontando para a escuridão atrás de Victor. Então ele viu a boca da menina movendo-se. Tentando falar.
               - Atrás d... de... você – Rhaela disse, com uma voz pesada, enquanto seus olhos enchiam-se de uma tremeluzente água.
               Foram as únicas palavras que Victor jamais ouvira sair da boca de Rhaela. Mas, infelizmente, eram as últimas que queria ouvir.
                Quando se virou, viu. No fim, era mesmo um covarde.