quarta-feira, 25 de junho de 2014

Despretensiosamente



MEUS dedos passeiam
Despretensiosamente 
Enquanto a noite torna-se fria

Lá fora, o vento subjuga os incautos
Os subjugados perecem 
Frente o desdém natural
E quebra-se o inquebrantável diamante
Frente à singular suficiência do tempo

Enquanto o inverno faz do céu neblina 
E os velhos ameaçam não sobreviver à doença,
Os corações obrigam-se a erguer chama 
Para que não se deixe congelar 

Enquanto duvido da vida amanhã
Do pão e do chão certos de hoje
Meus medos passeiam 
Despretensiosamente 

No frio desfaz-se 
A gloriosa imagem do futuro
- Resta-nos só os nós dos dedos
Gelados como a galáxia 

Ouçam-lhes os supostos relatos 
Dos que encontraram, no frio, amor
Tudo o que no frio encontrei 
Foram corpos congelados à morte
Foram olhos assustados 
E gargantas sem força para gritar

Mas, enquanto pelos finos 
Fios pretos de cabelo 
Meus dedos passeiam
[Despretensiosamente] 
Viajo, e o suposto destino
Talvez seja o que chamam amor

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Ido (Standing still in the dark)

Já vimos essa história na TV­­
Já ouvimo-la nunca propaganda sem graça de Dia das Mães
Já ouvimo-la num velho blues perdido pelas décadas
Blues cheirando a bares pequenos e fumaça de cigarro barato
Derramando notas efêmeras e lentas como o regozijo inexistente do homem
Por sobre as cabeças dos homens solitários
Por sobre as pernas das belas moças que constituem companhia
Negando o poder do presidente dos Estados Unidos
Negando as mortes meticulosamente ocultadas, das guerras
Negando as palavras pujantes dos macabros discursos de Hitler
Chorando para que as câmaras de gás não houvessem mesmo existido
Salvando-nos as almas do inferno

Saboreamos a glória dos dias
E morremos aos montes nos chãos frios dos hospitais,
Que, de paz, só mesmo o branco
Pela paz, só as paredes brancas fazem

Já flagramos por dias infinitos
O eterno namoro do sol à lua
As eternas voltas e voltas e voltas sem termo
O eterno expandir do Universo
(E a ameaça de uma entropia sem precedentes)
E nos chocamos contra nossa própria órbita
E ouvimos os sermões inexistentes do Pai no Céu
E ouvimos com as orelhas baixas de cão
Os sermões do pai na terra
E demos voltas e voltas e voltas em redor do quarteirão
Em busca dum sentido qualquer que nos fizesse erguer
Em busca de uma razão palpável para, enfim, viver
Mas a única coisa que nos iça, na manhã, é o medo

Desejo, então, com meus irmãos, regressar ao mar
Declarar-me, enfim, estranho a esta estranha terra
Sujeitar-me ao frio quase inexplicável da manhã,
Quando a relva ainda vibra o frio do orvalho
Quando os pássaros da manhã ainda não encontraram,
No sol, razão para cantar

Sob as ondas, não sob o Jardim do Polvo
Nem maculo-me, eu, com o título de Nascido do Mar
Pois que vemos aqui mais um genuíno caso
De patinho feio, e sua mãe talvez voe distante
E talvez não haja paternidade a estes renegados
E talvez seja este o derradeiro inferno para queimar seus pecados
Sua vida sob as mãos pegajosas dum falso Ancião dos Anos
[Sem ônibus ou submarinos amarelos para nos levar através do universo]

E talvez o mar seja não apenas o turbilhão de água salgada
E talvez seja nem parente das lágrimas, suas usurpadoras
Talvez vibre perifericamente num som qualquer de chocalho
Talvez soe como soa o chapinhar dos passos dos cascos sobre a terra molhada
Bem, talvez suas ondas chiem através do papo da galinha...

Sei que me demoro, ah, me demoro com as palavras
E talvez seja afinal, o mar, nada mais que palavras
Escritas e não escritas, faladas e não faladas através dos anos
[Gracejos e risadas secretos, escondidos entre o estômago e o esôfago]
Anos e anos e anos de amores perdidos e encontrados
Com a mesma frequência que se chocam as sanhas ondas contra as pedras
Ano mais, ano menos de solidão...

Junto as mãos em prece, então
E peço a ninguém, não por salvação
Mas por vida
Não é que tenha-a perdido numa esquina qualquer
Tampouco que tenha-a esquecido como viver
Mas que fui sempre um cego pensando ver cores na escuridão
Sempre um inclinado à revolução
Um Robespierre aguardando seu destino sob a lâmina da guilhotina
Um Tiradentes, condenado porque via demais
Um tolo, afinal, tendo perdido todo e qualquer contato
Com as misteriosas coisas de agora
Com os estranhos perfumes que circulam, agora, através das ruas

Não como um Buda condenado à sorte do sossego eterno
Paciente, sob sua árvore que, para si, não é nada
Mas como um menino das ruas, que corre, tropeça
Canta, anda por aí, saltitante, apertando mãos
E nada lhe calha – de nada vale pensar
Quando deita-se no conforto ou desconforto
Da dureza da pedra ou da maciez da pena do ganso

Mostra-me, vida, a estrada de tijolos amarelos
Nem que não conduza ao fim do arco-íris
Mostra-me o caminho pelo qual vim
Pois que os leões beberam o sangue que derramei
Quando tentava deixar uma trilha

Mostra-me, então, os encantos reais de ser
Aquele lugar onde do medo jamais ouviu-se falar
Aquele lugar que nunca esteve fadado ao perecimento
Onde não há grades ou muralhas,
Bombas de efeito físico ou moral
Onde as crianças não têm medo de sair à rua

Uma palavra há:
A que, nos dias escuros de previsões incertas do tempo
Mover-nos-á através dos lamaçais dos campos tomados
O vento soprando-nos como sopra pétalas de dente-de-leão
Revelando-nos a beleza das belezas: os que, mesmo que não possam, tentam ver.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Barcos de Porto





É nesses becos estreitos sem saída
Entre casas e mais casas
Nos ruídos certeiros de bolas de bilhar
Entre uma página e outra duma história bem contada
Ou suficientemente desinteressante pra fazer cochilar
Ou suficientemente grande pra que nos percamos
- Talvez seja aí que viva a felicidade

Talvez nem faça parte da vida, a felicidade
Quiçá venha de fora, de qualquer outro lugar
Escuro, sem luz, do universo afora
Quiçá more em qualquer pedacinho de nós
E aguarde ansiosamente para que acendamos seu pavio 
Para nos reconduzir com seu inestimável poder reintegrador

Quando é que a encontrarei?
Já a encontrei antes? Hei eu de encontrá-la?
Sei, eu, que já a vi – talvez não a tenha nem tocado

Eu a vi num genuíno e belo sorriso de uma miúda menina
À luz do sol do fim duma tarde como qualquer
Eu a vi no sol escaldante de meio-dia,
Enquanto caminhava por uma rua qualquer
E pensava no que viria a seguir [no que viria para todo o sempre
Eu a vi numa festa de luzes numa noite meio-fria do sudeste
Eu a vejo numa lembrança de campos esverdeados e canções sinceras da alma
Eu a vejo no castelo de Carrickfergus – numa vida que talvez tenha sido minha

Eu a vi no - eternamente gravado em mim – fim de tarde da bela, fria e santa Catarina
[As cores dançando no frio céu azul com divina suavidade]
E a vi também num pequeno menino dourado, numa tarde do sertão
E tornei a vê-la numa sala escura de boas-vindas e sorrisos vários
Vi-a no carnaval do Pelourinho e nas ladeiras de Olinda
Vi-a numa tarde quente e húmida do Rio Grande do Norte
Vi-a duma janela qualquer – janela escura de se mergulhar

Flagrei-a em sonhos surreais e em momentos palpáveis
Debrucei-me sobre livros e encontrei dela resquícios, também
E veio até mim quando os dedos de Pachelbel
Dançaram por sobre as teclas do piano em Canon
E vem até mim quando os divinos dedos de Gilmour
Dançam por sobre as cordas de guitarra
Como pode ser, então, que tão pouco a encontro?

Vejo-a nas lembranças
Vejo seus milhões de pedacinhos espraiados por cada singelo canto do mundo
Vejo-a no quebrar das ondas do mar na costa e no cheiro divino da maresia
Reparo-a na saudade de um milhar de pessoas e de ninguém
Por que não posso, eu, tocá-la?

E voa, a felicidade, junto aos pássaros dos fins de tarde
E canta, a felicidade, junto às cigarras dos fins de tarde

E me encontra ferido,
Num quarto de penumbra,
Num dia infeliz

E eu mergulho, perdido
Às mortais águas profundas
Ao seu derradeiro resgate.