Não foi isso, mesmo, que eu quis dizer.
Quando
se fecharam as todas as portas enfileiradas por sobre as calçadas cinzentas e
negras – cansadas de uma vida infinita a suportar o peso de passos maltrapilhos,
apressados e inquietos -, portas que ofereciam, ainda, por trás de vidraças
fendidas e rachadas, embaçadas, algum resquício de luz que se opusesse à
escuridão imperativa que se alastrava impiedosamente ao longo dos bairros, eu
lembrei-me de que não havia dito o que queria dizer; pior! Havia dito o que não
queria dizer - e já era tarde. Os baques terríveis negaram-me uma chance de me
explicar e, quem sabe, fazer com que eu me visse livre desse abismo
vilipendioso do fracasso.
A
energia da cidade ameaçava acabar para todo o mais das eras, mas tudo o que eu
temia era que se fossem minhas fotografias de papel: empilhadas, arranjadas com
classificação anual, com as observações levianas, escritas a caneta barata, acerca
dos supostos fatos que as motivaram ou do evento que se comemorava na ocasião.
Eu voltaria à felicidade, se me fosse garantido só um solitário lampião, ou uma
vela de sebo que me durasse semanas, só para habituar-se à felicidade virtual
das imagens, para só então morrer no agridoce acalento de lembranças mornas de
papel. Com a luz iam-se embora as fotografias. Eu me pegava pensando na
possibilidade remota de um retorno do sol, de uma alvorada que se converteria
em inspiração para canções, para poemas – ah, saudade dos poemas! – para qualquer
filme não muito meloso, daqueles que fazem água, do coração. Foi tão tarde que
compreendi o porquê do pôr-do-sol ser tão mais triste que a aurora. Os que
desejaram a escuridão com tanto ardor, hoje pensam em quebrar os próprios
pescoços, porque não mais podem ver as palavras formando-se por sob a ponta
fina da pena, nem tomar forma por sobre o papel, que já não nos serve de nada.
Eu
queria que uma daquelas tantas portas não houvesse, para mim, se fechado. Dos milhares
de baques vorazes e definitivos, foi o da sua porta a me arrancar o coração;
talvez tenha ele permanecido do lado de dentro da casa. E eu jamais sofrera
tanto quanto quando descobri que me havia conversado vivo; ironia dos destinos –
imagem comum pelas ruas – homens absortos vagando, sem coração. Agora, eu; e
pior, na escuridão.
Com
o breu, vinha o frio, e era frio desesperador, selvagem, sem qualquer
precedente. Gente nova e gente velha morria pelas estradas, com quase nada mais
que pão duro para comer. Na TV, um velho herói de guerra aproveitava-se dos
instantes finais da energia elétrica para afirmar que tudo tornaria a ser
glorioso, num futuro pouco distante. Eu ouvi àquelas palavras vazias, de quem
ainda tinha qualquer produto para vender, e ri comigo mesmo (de onde quer que
tenha tirado forças para rir), pois que havido sido a própria glória que nos havia conduzido à
decadência, e os últimos recursos se esgotavam.
Bah, o mundo fica aí, a gente é quem morre!
Os profetas de rua diziam, e eu me sentia como Cristo, a ponto de ser
crucificado. Me imaginava pendurado na cruz, nu, num frio dos infernos, naquela
noite dos tempos, interminável noite sem termo. E, antes de fechar meus olhos
cansados de breu, meu último pensamento seria endereçado às palavras que eu
deixei que saíssem desordenadamente. E não era aquilo que eu queria dizer. Não
era aquilo, mesmo, que eu queria dizer. Disseram, os grandes, que jamais haverá
maneira de se captar exatamente o que um homem quer falar, porque nossas
cabeças não têm janelas, têm só uma língua e um par de olhos para se tentar
dizer o que se quer dizer. Naquela noite, minha língua e meus olhos falharam. O
que veio depois foi, talvez, o primeiro, talvez o último, baque da fileira
interminável de portas de madeira escura.
E,
de fato, haverá tempo. Alguns dizem que haverá. Dizem que estamos todos de
passagem para uma nova espécie de vida em que a falta de luz não será problema
nunca. Outros dizem que as novas terras serão governadas por homens como nós,
não homens como eles. E eles se embebedam e caem, espalhando por sobre o rosto
suas cabeleiras brancas e antigas, felizes com a imagem maravilhosa do amanhã
ensolarado, babando vinho barato pelas bordas de seus lábios rugosos.
Dentro
das casas completamente isoladas das ruas – em que só homens perdidos e sem
coração caminhavam – havia mundos que precisavam de um sol para iluminá-los.
Não haveria mais sol. A humanidade estava eternamente fadada a viver na
escuridão! A noite escura da alma havia se manifestado no mundo! E tudo o que
eu queria era que você soubesse que não, não era aquilo, mesmo, que eu queria
dizer.
A
vida era um jogo de mal gosto, afinal. Me pergunto se tudo aquilo não acontecia
somente no interior do meu peito de homem quase sem coração. Bem que podiam, os
meninos e meninas, estarem a aproveitar-se da escuridão para sair por aí, pelas
ruas, felizes, sem medo das enfadonhas perseguições e repreendas dos velhos
montados em suas carrancas.
Eu
quero voltar! Como sempre, se impõem aos olhos as imagens ensolaradas e antigas
dos dias frescos sob a sombra, cheios de brisas amenas, com a cabeça apoiada em
qualquer colo que se ame, com nada mais que uma infinidade de gramados para
qualquer lado que se olhasse. Eu queria
voltar. Quero voltar? Quando desaguarem em cascata as imagens palpáveis dos
lábios quentes e hospitaleiros, das mãos mornas, macias, de corpos em tremor e
regozijo, de abraços apertados em dias frios de nevoeiros... Somente quando não
passar de lembranças, haverá a eterna e insaciável vontade de voltar. Agora, tem só escuridão, e temor pelo que se
passará quando se extinguir o último raio de eletricidade.
Eu
permaneço parado diante da porta fechada, a iluminação amarela escapando por
entre o vão que separa a porta do chão, o cantar de um grilo de companhia. Eu
ergo a mão para tornar a apertar a campainha. Não. O que foi que eu acabei de dizer? Não sei, e talvez seja um dos meus infernos, minha falta de
memória. Eu queria que você voltasse, só para que eu pudesse dizer: Não era
isso. Não era isso, mesmo, que eu queria dizer.