quinta-feira, 27 de março de 2014

Casas sem Janelas


Não foi isso, mesmo, que eu quis dizer. 
                Quando se fecharam as todas as portas enfileiradas por sobre as calçadas cinzentas e negras – cansadas de uma vida infinita a suportar o peso de passos maltrapilhos, apressados e inquietos -, portas que ofereciam, ainda, por trás de vidraças fendidas e rachadas, embaçadas, algum resquício de luz que se opusesse à escuridão imperativa que se alastrava impiedosamente ao longo dos bairros, eu lembrei-me de que não havia dito o que queria dizer; pior! Havia dito o que não queria dizer - e já era tarde. Os baques terríveis negaram-me uma chance de me explicar e, quem sabe, fazer com que eu me visse livre desse abismo vilipendioso do fracasso. 
                A energia da cidade ameaçava acabar para todo o mais das eras, mas tudo o que eu temia era que se fossem minhas fotografias de papel: empilhadas, arranjadas com classificação anual, com as observações levianas, escritas a caneta barata, acerca dos supostos fatos que as motivaram ou do evento que se comemorava na ocasião. Eu voltaria à felicidade, se me fosse garantido só um solitário lampião, ou uma vela de sebo que me durasse semanas, só para habituar-se à felicidade virtual das imagens, para só então morrer no agridoce acalento de lembranças mornas de papel. Com a luz iam-se embora as fotografias. Eu me pegava pensando na possibilidade remota de um retorno do sol, de uma alvorada que se converteria em inspiração para canções, para poemas – ah, saudade dos poemas! – para qualquer filme não muito meloso, daqueles que fazem água, do coração. Foi tão tarde que compreendi o porquê do pôr-do-sol ser tão mais triste que a aurora. Os que desejaram a escuridão com tanto ardor, hoje pensam em quebrar os próprios pescoços, porque não mais podem ver as palavras formando-se por sob a ponta fina da pena, nem tomar forma por sobre o papel, que já não nos serve de nada.
                Eu queria que uma daquelas tantas portas não houvesse, para mim, se fechado. Dos milhares de baques vorazes e definitivos, foi o da sua porta a me arrancar o coração; talvez tenha ele permanecido do lado de dentro da casa. E eu jamais sofrera tanto quanto quando descobri que me havia conversado vivo; ironia dos destinos – imagem comum pelas ruas – homens absortos vagando, sem coração. Agora, eu; e pior, na escuridão. 
                Com o breu, vinha o frio, e era frio desesperador, selvagem, sem qualquer precedente. Gente nova e gente velha morria pelas estradas, com quase nada mais que pão duro para comer. Na TV, um velho herói de guerra aproveitava-se dos instantes finais da energia elétrica para afirmar que tudo tornaria a ser glorioso, num futuro pouco distante. Eu ouvi àquelas palavras vazias, de quem ainda tinha qualquer produto para vender, e ri comigo mesmo (de onde quer que tenha tirado forças para rir), pois que havido sido a própria glória que nos havia conduzido à decadência, e os últimos recursos se esgotavam. 
                Bah, o mundo fica aí, a gente é quem morre! Os profetas de rua diziam, e eu me sentia como Cristo, a ponto de ser crucificado. Me imaginava pendurado na cruz, nu, num frio dos infernos, naquela noite dos tempos, interminável noite sem termo. E, antes de fechar meus olhos cansados de breu, meu último pensamento seria endereçado às palavras que eu deixei que saíssem desordenadamente. E não era aquilo que eu queria dizer. Não era aquilo, mesmo, que eu queria dizer. Disseram, os grandes, que jamais haverá maneira de se captar exatamente o que um homem quer falar, porque nossas cabeças não têm janelas, têm só uma língua e um par de olhos para se tentar dizer o que se quer dizer. Naquela noite, minha língua e meus olhos falharam. O que veio depois foi, talvez, o primeiro, talvez o último, baque da fileira interminável de portas de madeira escura.
                E, de fato, haverá tempo. Alguns dizem que haverá. Dizem que estamos todos de passagem para uma nova espécie de vida em que a falta de luz não será problema nunca. Outros dizem que as novas terras serão governadas por homens como nós, não homens como eles. E eles se embebedam e caem, espalhando por sobre o rosto suas cabeleiras brancas e antigas, felizes com a imagem maravilhosa do amanhã ensolarado, babando vinho barato pelas bordas de seus lábios rugosos.
                Dentro das casas completamente isoladas das ruas – em que só homens perdidos e sem coração caminhavam – havia mundos que precisavam de um sol para iluminá-los. Não haveria mais sol. A humanidade estava eternamente fadada a viver na escuridão! A noite escura da alma havia se manifestado no mundo! E tudo o que eu queria era que você soubesse que não, não era aquilo, mesmo, que eu queria dizer. 
                A vida era um jogo de mal gosto, afinal. Me pergunto se tudo aquilo não acontecia somente no interior do meu peito de homem quase sem coração. Bem que podiam, os meninos e meninas, estarem a aproveitar-se da escuridão para sair por aí, pelas ruas, felizes, sem medo das enfadonhas perseguições e repreendas dos velhos montados em suas carrancas. 
                Eu quero voltar! Como sempre, se impõem aos olhos as imagens ensolaradas e antigas dos dias frescos sob a sombra, cheios de brisas amenas, com a cabeça apoiada em qualquer colo que se ame, com nada mais que uma infinidade de gramados para qualquer lado que se olhasse. Eu queria voltar. Quero voltar? Quando desaguarem em cascata as imagens palpáveis dos lábios quentes e hospitaleiros, das mãos mornas, macias, de corpos em tremor e regozijo, de abraços apertados em dias frios de nevoeiros... Somente quando não passar de lembranças, haverá a eterna e insaciável vontade de voltar. Agora, tem só escuridão, e temor pelo que se passará quando se extinguir o último raio de eletricidade. 
                Eu permaneço parado diante da porta fechada, a iluminação amarela escapando por entre o vão que separa a porta do chão, o cantar de um grilo de companhia. Eu ergo a mão para tornar a apertar a campainha. Não. O que foi que eu acabei de dizer? Não sei, e talvez  seja um dos meus infernos, minha falta de memória. Eu queria que você voltasse, só para que eu pudesse dizer: Não era isso. Não era isso, mesmo, que eu queria dizer.

sábado, 1 de março de 2014

Sonhos de um homem que não conseguiu desistir


Quando [e se] puder eu regressar 
Ao tempo e ao lugar 
De que falam essas imagens turvas 
Que mudança que farei - que faria?
Quais meios submissivos para livrar-me 
- Numa só sorte de golpes -
Dessa constante saudade 
Do que nunca pôde ser? 

Passo a passo - num grande passeio escuro, 
Num caminho de cimento sulcado, 
Que remete aos abrolhosos telhados, 
E me forçam à caminhada pouco certa 
Sobre a abóboda fatal da incerteza; 
Num ímpeto de liberdade, 
Eis que corda dou ao grande piano, 
Apenas para mal sobreviver à desaprovação
Daquele homem alto, do parapeito, 
Do qual o rosto não se vê,
Que tudo o que aprova é o silêncio.

E, do meu lado, ela caminha, 
Como caminhou por tantos outros dias,
E é exatamente aquele mesma; 
Unicamente a que sempre foi, 
Com os olhos, talvez, meio tristes, 
Mas um sorriso e uma ânsia pelo desafio 
- O desafio ora presente, que 
O tédio dos anos fez questão de enterrar.

No chão, meus pés sangram,
Quando com cautela me distancio, 
Aos poucos, do vidro que estilhaçou-se 
Pelo poder febril de uma antiga canção, 
A que ousei reproduzir sem fervor 
- Numa época que não é para canções, 
Mas apenas para vidro estilhaçado sob a sola dos pés, 
Para sangue e questões natimortas 
Acerca das dores que hão de doer
E dos poucos caminhos que há para se seguir. 

Há caminhos que nunca foram para mim, 
Que falam de conversas tolas, inclinadas 
Sobre balaustradas tão fantasiosas,
E sobre as mesmas conversas tolas 
Em belos campos noturnos, pouco frios, 
Em que belos pássaros brancos, como fantasmas, 
Voam por sobre os belos gramados em verde-escuro,
E eu levanto a mão, em aceno 
a todos aos quais nunca dirigi palavra 
E é um contido sorriso frio que há em retorno.

Eu queria, posso agora ver, 
Haver sido dessas conversas tolas, inclinadas 
Por sobre balaustradas fantasiosas,
Sobre a sorte das coisas mais tolas, 
Como quem deseja, a despeito da certeza - 
Desvencilhar-se da verdade 
[Que tanto pesar acompanha, 
E tanta solidão acrescenta] 
Ao mundo, que já é tão pequeno;
Ao universo, que já me deixou para trás
E me legou nada mais que abandono.

E, do meu lado, ela caminha, 
Como caminhou por tantos outros dias
E negam-se-lhe a entrada às salas de cinema 
Por ser, ela, tão pequena, 
E eu desejo tomar alguma satisfação - 
Porque, se bem me lembro 
Fora ela a livrar-me dos estilhaços de vidro, 
Que me fizeram sangrar a sola dos pés. 

Eu desejo, então, conhecer
a todos os cheios de poder, 

Aqueles meio-amigos aos quais um telefonema basta,
E o mundo cai, grelhado, sobre uma bandeja de ouro;
Cai sobre a fundação pouco segura 
Esculpida paulatinamente no concreto 
do meu coração endurecido, 
E o sal das lágrimas já não o pode corroer - 
O sal das lágrimas já nada há de fazer. 

Quando, na noite que tanto queria ser festiva
Tudo o que há é o silêncio azedo, seco 
E o barulho molhado de chuveiros que fazem pressão 
Contra o plano branco do banheiro - tão bem iluminado 
Que cada pequena irregularidade 
Salta aos olhos com acenos angustiantes
Vejo não tratar-se do melhor lugar 
Para lembrar-se do sangue vermelho, vivo 
E do vidro selvagem sob a sola dos pés 
E dela, caminhando do meu lado 
Como sempre houvera caminhando. 

O cheiro do alvejante e uma conversa entrecortada 
Para lá da porta, tão altiva, de madeira 
Trazem à tona a água em meu relógio 
Águas que talvez fossem salgadas 
De sal que já não corrói 
A dureza de qualquer coração 
que pudesse haver, lá dentro, na escuridão.

E as garotas estão todas com os olhos 
Ferventes, sobre as telas brancas 
E facilmente se entristecem com as pequenas conversas - 
paralelas - sobre qualquer verdade 
Que possa haver neste mundo, tão pequeno
Sobre qualquer palavra que possa matar 
Toda essa falta de sede de viver.

E, aquele que aparenta tanta força 
Justamente por aparentar tanta fraqueza 
Debruça-se por sobre as balaustradas fantasiosas 
E talvez não espere por nada que não 
As conversas tolas sobre as inverdades 
E talvez, o cigarro que acende, 
Seja para iluminar qualquer vazio escuro 
De um coração que se supunha 
Que deveria existir, no interior 
Daquele peito quase sem vida. 

Meu piano foi sempre menor 
Que aquele que jaz no caminho abobadado 
De cimento quase sempre sulcado 
E ainda me admira o fato 
De que se mantenha firme, em detrimento 
Daquelas casas sem qualquer estrutura
[Talvez sejam as crianças que olham, 
Através das janelas, e o mantêm pairando 
No ar frio e escuro de um mês de Dezembro 
Que nunca ousará ir embora. 

E, do meu lado, ela caminha 
Como nunca mais ousou caminhar 
Como nunca mais ousou comentar 
Acerca das xícaras meio-amargas de chocolate 
E daquelas canções das quais, hoje, 
Pouco tiro proveito - 
Quando o tempo que deveria seguir 
Converte-se nas mortais batidas de tambor 
Que unem-se ao tique-taque 
- pouco quisto - de um relógio invisível. 

No relógio invisível, 
Quase parado, pela água salgada [das lágrimas
Uma mosca já o fez de morada 
Os números e as marcações somem, aos poucos 
E esta pequena besta, amante da carne [apodrecida
Incita-se contra o muro de vidro 
O que não me cortará os pés ou me fará sangrar
A única barreira que me mantém, então, 
Distante do anjo que nos beija, afinal.

E eu corro de bar em bar, de viela em viela, 
Deliciando-me com os cheiros das cervejas 
E das carnes pouco-passadas 
E dos perfumes infantis, dos perfumes femininos 
Dos perfumes tristes dos homens solitários 
Meus dedos dos pés ansiando pela areia fina 
E pelos dias imortais de sol -
Os dias imortais de sol - o refúgio contra a mosca 
Dias de areia sob as solas dos pés - nada de vidro; nada de sangue. 

E eu corro de avenida em avenida 
Sob os olhares de rostos e mais rostos 
E procuro por público - ao qual remeter a ideia 
Sobre a qual falo - ou ao menos tento falar 
E posso talvez convidá-los às balaustradas fantasiosas 
Para discorrer sobre assuntos tolos 
Podendo ver, no centro dos olhos iluminados, 
Um quê de compreensão pelas verdades
Mesmo que falemos das mais vis tolices! 

O ponto de partida 
Será sempre o ponto de chegada 
Quando das correrias infames 
E das canções violentas de sangue 
E das canções macias de amor 
E dos amores tão pouco vividos 
E da sensação de pequenez do mundo 
- Quando disto tudo, o que restar for o esquecimento 
O silêncio virá acompanhado da uma felicidade 
Pouco comum - deveras particular. 

Você está de volta à mesma cama quente 
E tudo o que aprendeu foi que o esquecimento 
É a palavra que mais se assemelha 
à incompreendida felicidade
E tudo o que há de se fazer 
Para que se atinja qualquer lado do caminho, agora 
É simplesmente deixar que o já rarefeito ar 
Penetre nos pulmões cada vez menos.