domingo, 25 de janeiro de 2015

Há Séculos

Há séculos que não escrevo versos
Há versos que vidas inteiras não bastam pra se escrever
Que se extraem de supernovas, cerimônias guiadas 
Dores de cabeças tormentosas, praias noturnas 
Iluminadas pela sorte estável de estrelas
De mares incansáveis e o mistério inesgotável 
A vida, seus caminhos íngremes, suas estradas sinuosas 
Seus pontos de partidas e seu rumo eterno a lugar nenhum

Há séculos que penso haver encontrado amor 
O sentimento que toma a mim como o homem sedento à água
Os rostos que observo casualmente e sucumbo no torpor 
O tempo passando como o barcaceiro passa em torno da costa 
Rumo aos oceanos longínquos, as águas esquecidas do eterno
Mas ainda não encontrei fios com que canalizá-lo
Encerram-se nas minhas palavras e no inextinguível potencial
Enquanto corro ao horizonte; quase sem olhar pra trás 
Quase derrocando, quase dissolvido, quase esquecido

Penso todos os dias que encontrei a direção 
Que é mera questão tempo até que a vida venha até mim
Que nada perco em sonhar enquanto o mundo desmorona 
[Sonhos de profundo afeto; caótico mundo real]
Abraços mal pensados e abraços jamais esquecidos
Mãos, e olhos, e uma vida que não se resume à garrafa
Nem à crise nacional, nem ao preço iminente do dólar  
Talvez à paradisíaca caminhada através da costa deserta
O pôr-do-sol e uma noite eterna de luar
[Todo aquele grande coração...]

Caminho como um cego em direção a ti
Em todas as direções de todas as estradas 
Todas as placas, e semáforos, e lombadas 
Todas os rostos, e animais que nos obstrui o caminho 
Todas as praias, e cegos das beiradas, que pensam ver 
Todas as paradas pra café da manhã, almoço e jantar 
Todas as pistas de pouso e todos os voos 
Estou sempre em tua busca, inominável ateu 

És tu quem me acende o pavio 
E quem me inspira o eterno amor do qual escrevo 
Mas a partir do qual ainda não aprendi a viver 
Confino-me à tua sorte 

Agarro-me à lei da mudança
Meço minha vida através de quaisquer palavras escritas 
Neste mundo já não se fala do que traz relevância
Nós estamos todos mortos e ainda não entendemos
Nós temos, todos, amor em ambas as mãos, 
Mas preferimos encarar o vazio, enquanto a tocha se dissipa 
Dia mais, dia menos de solidão

O cigarro queima e a deliberada proliferação 
[Sinto-me como se estivesse vivendo numa cidade sem crianças]
E, se eu aprumar os pulmões e correr em qualquer direção,
Encontrarei, eu, em qualquer dessas esquinas do mundo,
As imagens e vívidas lembranças - luas cheias, dias imortais de sol
Que queimam como tíner no meu coração?
(Querido ser humano, pares de sofrer) 

Encontrarei lá fora tudo aquilo pelo que, dentro de mim, vivo?
Convenço-me de que o tempo trará o que carece de ser trazido 
Mas a quem quero enganar? 
Quem trouxe esperança ao homem enganchado na cruz? 
A esperança é a bela e suculenta maçã vermelha 
Presa entre os dentes do morto leitão 
É uma vela que brilha num outro planeta
É uma mentira sem sustentação 
(Pela qual vivo e escrevo versos
Pela qual morrerei com um sorriso, meu cadáver em putrefação) 

Sou só uma medíocre alma que não merece ser ouvida
Só uma faísca da colisão entre o vazio e o vazio
Um palerma menos lembrado que esquecido 
Apenas um homem na misteriosa e infindável busca
Do amor.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Todos Os Céus (Capítulo II)


 II

               - Pra falar a verdade, não me agradou tanto assim – o velho que se chamava Leopoldo De Fiore asseverou, com uma mão sobre o queixo, para parecer pensativo. – Não sei. Algo está colorido demais. E essa tipografia está muito grande. Podemos melhorar isso?
                - Mas é claro! Carlos, o gerente do departamento criação e arte da DreamPlay respondeu de pronto.
                - É a quinta vez que reformamos a arte, seu De Fiore – Marcos Aguiar disse num tom de voz impaciente, com os dedos da mão direita tamborilando por sobre a extensa mesa da sala de reuniões e apresentações.
                - Sim, eu sei, mas... Não sei. Falta algo. – O velho disse, com os olhos voltados para o banner de apresentação. Depois, levou os olhos aos olhos de Marcos, e eles diziam “amigo, não consigo encontrar o problema, mas um problema; isso há”. Marcos encarou aquela careca polida cheia de sardas, que refletia as luzes do teto quase com a perfeição de um espelho, do engomado dono da De Fiore bebidas e sentiu vontade de martelá-la abaixo, até que o bico do martelo alcançasse a polpa do cérebro burro do maldito. Mas tudo o que fez, afinal, foi exibir um dos seus amigáveis sorrisos.
                - Seu De Fiore – Marcos disse, logrando em êxito na retenção da raiva. – O que, exatamente, o senhor quer na propaganda?
                O velho olhou para um de seus assessores, que lhe devolveu um olhar imóvel e impotente diante da nova recusa. Na imagem impressa no banner, a silhueta de um jovem com fones de ouvido, jeans largos e mochila nas costas, beijava o gargalo da garrafa de refrigerante prazerosamente, enquanto uma centena de imagens coloridas surgia ao seu derredor, como se a bebida o houvesse despertado para um novo mundo mágico, surreal, cheio de prazeres. E, é claro, um skate descansava verticalmente, apoiado entre a ponta do pé e os dedos da mão esquerdos. No background, ondas eufóricas debandavam-se para todos os lados, enquanto um esplêndido sol amarelo brilhava lá no alto, encimando como uma coroa toda a criação. Pouco acima do sol, a arte tipográfica dizia: “Refrigerante De Fiore” e “Entre também nessa vibe”.
                - Acho que encontrei o problema – disse Leopoldo De Fiore com um sorriso altivo, com cara de quem houvesse, finalmente, matado a charada. – Se o sujeito é claramente skatista, por que têm ondas no fundo da imagem?
                Marcos e Carlos entreolharam-se, enquanto o velho Leopoldo sorria com cara de “eu estava certo o tempo todo, vejam”. Foi Marcos quem falou.
                - Mas seu De Fiore, as pessoas vão à praia porque estão com calor. A gente quer colocar a bebida como sinônimo de alívio pra quentura; quer algo mais acurado que uma praia, pra isso? Além do mais, hoje em dia, que tipo de praia não tem ciclovia? Sim, dá pra andar de skate nas ciclovias, também.
                - Não aqui em Serenatas – o velho colocou. – Aliás, nem praia tem aqui. Encontro um defeito novo toda vez que me viro pra esse desenho.
                Ele não falou isso. Não, ele não pode ter falado desenho. Eu devo ter imaginado. Marcos pressionou as unhas contra as palmas das mãos e respirou fundo. Poucos clientes conseguiam leva-lo àquele estado de nervos, e, infelizmente, um deles estava sentado com um meio-sorriso cínico, bem à sua frente.
                - Na arte, o senhor quis dizer – Marcos corrigiu-o polidamente, escondendo a fúria sob leves inspirações e expirações.
                - Marcos – Carlos repreendeu-o. Voltou-se, então, para o velho pé-no-saco. – O que o senhor acharia melhor? Um parque com umas pistas de skate?
                - Pareceria mais convincente, eu acho.
                - Porra, a gente não tá tentando vender skate – Marcos deixou escapar. – O skate foi só um detalhe pequeno.
                - Poxa, Marcos! – Carlos voltou a repreendê-lo, com aquele olhar capaz de murchar jardins inteiros.
                - Você não está tentando vender nada, meu amigo – Leopoldo disse num tom belicoso. – Minha empresa está. E só vai existir contrato com vocês quando os anúncios me agradarem.
                - Mas é claro, senhor De Fiore – Carlos disse, visivelmente envergonhado. – O meu amigo se equivocou na sentença.
                - Parece que não foi só nisso que o seu amigo se equivocou – o velho disse, com os olhos cínicos postados sobre Marcos, engolindo-o.
                - O senhor vai ter o parque com pistas de skates – disse Carlos, tentando apaziguar o clima pesado.
                - É, mas não desenhados pelas minhas mãos – Marcos disse num tom de ponto final, erguendo-se da cadeira e dirigindo-se pra fora daquela maldita sala que não raro lhe provocava claustrofobia.
                Olhares de incredulidade seguiram-no, até que ele fechasse a porta de vidro atrás de si, dirigindo-se sem rodeios à mesa da cafeteira, que ficava ao lado da sala da Alice. Sim, a gostosa da Alice. Nada como uma fodinha naquele exato momento pra lhe abstrair do estresse. Parabéns pro velho, havia mesmo conseguido irritá-lo. Marcos pegou uma das xícaras voltadas para baixo que descansavam na pequena pia da área de recreação e começou a enchê-la de café, somente parando quando o café começou a ameaçar transbordar e sujar o chão. Sentou-se na mesinha redonda que havia no meio da sala e bebeu, tentando recuperar-se do mal estar, balançando freneticamente a perna esquerda.
                Quando estava já na metade da xícara, o Carlos, exatamente como ele havia imaginado, surgiu como um gigante, as costas tolhendo a luz do sol que penetrava através da janelinha de vidro, as mãos apoiadas nas cinturas - cara de quem tinha poucas e boas pra falar.
                - Que merda foi aquela?! – disse, o cenho franzido, os olhos tão grandes quanto ameixas. Marcos tomou um golinho de café antes de falar.
                - Não aconteceu nada demais lá dentro – respondeu. – O velho foi babaca, eu fui babaca de volta.
                - É, mas acontece que um dos dois babacas escreve o cheque do contrato. E acontece também que esse babaca não é você!
                - Mas tudo é dinheiro pra você, não é? – Marcos ergueu-se, seus olhos na mesma altura que os olhos do gerente do maldito departamento. – Entra um dono de empresa qualquer vestindo um Brooks Brothers e fedendo a charuto cubano e você vai logo arregalando esse seu cu!
                - Muito cuidado, amigo – Carlos disse, pronunciando “amigo” hostilmente, como quem pronunciaria o nome do seu pior inimigo.
                - E ele chamou a porra da minha arte de desenho, além de tudoMarcos concluiu, voltando a sentar lentamente, segurando a xícara de café com ambas as mãos, virando-a nos lábios, pra sugar o restante da bebida e os resquícios macilentos de pó de café mal coado.
                - Acho que você tá meio desviado da ideia central da DreamPlay. Sinceramente. Isso aqui não é exposição anual de portfólios e pinturas a óleo sobre lona. Pelo amor de deus, nós somos uma empresa de social media. Não importa se o cliente chama a porcaria da sua arte de desenho ou se chama anime de desenho chinês. A gente tá aqui pra fazer o que eles demandam, pra, então, conseguir o cheque de pagamento no fim do mês e colocar a porra do pão em cima da mesa de casa. Se você tá aqui pra se autopromover ou pra se tornar artista reconhecido, tá no lugar errado.
                Nesse momento, Alice, loira como o nascer do sol, pôs a cabeça pra fora de sua sala, com um olhar de preocupação voltado pra o lugar onde os dois homens batiam boca. Abriu a porta por completo e aproximou-se sobre passos sutis da mesa da área de recreação, que ficava a meros passos de sua própria área de trabalho.
                - O que houve, meninos? – perguntou-os.
                - O senhor Marcos Da Vinci Aguiar ferrou com o nosso contrato, foi isso o que houve. Sem mais De Fiore pra gente. – Carlos respondeu, os dedos sobre as têmporas.
                - Não venha atribuir a culpa só a mim – Marcos rebateu, o dedo indicador da mão direita erguido. – Lembre-se de quem foi o coordenador da porra da arte!
                - É, pena que você não ficou até o fim da reunião pra ver o velho mexer aquela maldita boca murcha dele pra dizer que estava saindo agora mesmo à procura da Establisher! – Carlos retrucou, soltando fumaça pelas narinas.
                - Merda – Marcos vociferou, as duas mãos sobre o couro cabeludo.
                - Merda, mesmo – Carlos concluiu. – Meus parabéns! – E saiu a passos pesados em direção à própria sala. Enfiou-se lá dentro e cerrou-a com um ressentido baque.
                - Ih, parece que a chapa esquentou – Alice disse, com cara de aflita.
                Das mais lindas das mulheres; das menos espertas, também. A chapa esquentou. Exatamente o tipo de coisa que a Alice diria. Ela era do tipo que abria a boca e te fazia querer morrer ou esmagar a cabeça dela contra o chão. Marcos já havia passado uma noite com ela, e havia sido das melhores do ano anterior. Mas, na manhã seguinte, quando Alice começara a falar bobagem por cima de bobagem, dizendo que o tio tinha um cachorro grande e peludo da raça “rôusqui siberiano”, que adoraria ir à Europa conhecer Los Angeles, e outras baboseiras dessa sorte, tudo no que Marcos conseguira pensar fora no silêncio.
                - Sim, a chapa esquentou – ele respondeu-a, secretamente sarcástico. – O que vai fazer hoje à noite? – perguntou-a.
                - Vou sair com meu noivo – Alice respondeu, erguendo as costas da mão esquerda e exibindo a enorme aliança prateada que jazia enfiada no dedo anelar. – E você?
                Sim, Alice agora tinha um noivo; era de se supor. Se ela não quisesse terminar pobre, fazendo planilhas no Excel até os sessenta anos de idade, esse era o momento certo de conseguir um parceiro: a metade da casa dos trinta. Por que era mesmo que Alice tinha uma sala? Ah, é mesmo, ela havia fodido o Silas, o dono da DreamPlay. Ela trabalhava com o setor de contabilidade e parte da administração.
                - Ah, está noiva – Marcos observou, meio desconcertado. – O que o seu noivo faz?
                - É dono de uma concessionária da Chevrolet – Alice respondeu. Bingo, Marcos pensou, mas disse apenas:
                -
Hum, excelente. Boa sorte, então, mais tarde.
                Alice, então, bebeu um copo d’água do frigobar e regressou à própria sala, mexendo aquele rabo enorme lentamente ao longo do corredor. Marcos estava exausto. Não tinha nada mais que fazer ali, por hoje. Ergueu-se e foi pegar suas coisas na sua sala, a primeira do corredor, bem do lado da escada que levava ao térreo e à saída. Jogou a mochila nas costas e saiu para a tarde que fervia, lá fora.
                Sacou o celular do bolso e discou o número dela. Chamou, chamou, chamou. Quase um minuto chamando, e nada. O tratava assim fazia já umas duas semanas. Não atendia as ligações, não respondia suas mensagens de textos. Até mesmo o havia excluído do seu perfil no Facebook. Marcos sentiu-se um otário por haver deixado a situação chegar àquele estágio. Ela havia visto, naquela noite, há exatas duas semanas. Ela estava maluca com um trabalho qualquer do Centro de Serviço Comunitário de Serenatas, procurando por textos de autoajuda, daqueles que se lê nesses eventos clichês de caridade; baixando aquelas músicas melosas, do tipo “Epitáfio”, dos Titãs pra servir de trilha sonora praqueles slides com aquelas imagens de stock do sol se pondo e de famílias felizes se abraçando. O notebook dela tinha o disco rígido corrompido e ela havia pedido o dele emprestado, porque o tempo estava correndo, e o evento já era no dia seguinte, e blá blá.
                Mas, tudo foi pra merda no momento de salvar as imagens que ela havia pesquisado no Google. A pasta de destino, que ficara gravada da última vez que o artifício de salvação de imagem fora usado, chamava-se “vinte e duas” e, dentro da pasta, descansavam vinte e duas imagens de senhoritas diferentes, inteiramente nuas, solenemente de pernas abertas, cheias de uma fome que lhes transparecia nos olhares. Inicialmente, na certa, Glenda havia pensado que se tratavam de simples imagens de atrizes pornô, dessas que se encontram aos milhares, internet afora, sem necessidade de esforços. Ela então pensaria em gargalhar e passar o resto da semana chamando-o de punheteiro, no mínimo. Mas ela havia notado os padrões. Glenda não era burra. Porra, ela havia reconhecido a Alice, que jazia, na foto, por sobre aqueles lençóis brancos, os cabelos derramados sobre o travesseiro, as fartas pernas generosamente afastadas entre si. Todas as fotos sobre a mesma cama. A cama dele, ela soubera. Fotos da Nikon Coolpix P600 dele. Fotos tiradas por ele. Vinte e duas traições.
                Aquilo acontecera por causa da formatação. O computador estava lento já há algum tempo e ele sabia que este andava precisando de uma boa limpeza geral. Antes de formatá-lo, fizera o backup de alguns arquivos importantes para o Google Drive, dentre eles, a pasta com as fotos que haveriam de condená-lo. Após as limpezas de disco, reinstalara o sistema, os programas dos quais precisava e voltara a baixar os arquivos que havia guardado na nuvem virtual (constituídos por fotos e coisas que escrevia, em sua maioria). Por culpa de alguma espécie de maldição, os últimos arquivos a serem salvos foram os que estavam contidos na pasta que tinha por título “vinte e dois”. Então, o barraco estava armado. Ela mandara que ele recolhesse suas porcarias do apartamento dela e desse o fora em cinco minutos. Marcos não protestara. Recolhera suas coisas e fora mesmo embora, aceitando, cabisbaixo, a punição pelos seus crimes. Mas, uma partezinha demoníaca de si dizia que as coisas aconteceriam similarmente às vezes anteriores. Era no que gostava de acreditar.
                Mas, Glenda não telefonara no dia seguinte, nem no seguinte, nem no seguinte. Marcos fora ao apartamento dela, então, no quinto dia subsequente, e fora atendido por Laura, que o alertara polidamente: “Glenda não quer vê-lo. Por favor, vá embora”. Ele não insistira. Fora embora, com a cabeça pesada, pensando que um dia se vingaria daquela parte animal de si, que berrava aos seus ouvidos tão mais alto do que o seu senso moral fazia. A vida seguira, Marcos sentindo-se como se o cerco estivesse se fechando definitivamente para si, como se tivesse deixado escapar por entre os dedos a mulher que escolhera para si, dentre as outras todas.
                Sentou-se num banquinho a caminho da Praça das Trincheiras, chamando a si mesmo idiota, mentalmente. Visualizou sua própria imagem, chegando naquele apartamento sem graça, abrindo a merda de um Cup Noodles e enfiando água fervente lá dentro; mastigando aquela massa com gosto de plástico enquanto via, de pálpebras pesadas, algum programa barato com dublagens horríveis do History Channel. Havia, definitivamente, estragado tudo. Azar no jogo, azar no amor; azar em todo o resto. E era apenas quarta-feira.


                ***

                Despertou na quinta-feira de manhã com latas de cerveja barata espalhadas pelo carpete do quarto, um bafo horroroso de cigarro no ar. Virou-se para o rádio relógio, que marcava 8:32 com os caracteres digitais intensamente vermelhos. Alguém escovava os dentes na pia do seu banheiro. As lembranças da noite, então, lhe estapearam a cara. A moça chamava-se Joana e também fora, na noite anterior a um dos pubs da cidade para conhecer a noite local serenatense. Era bela. Belos seios; bela bunda; belos olhos cor de avelã. Bela, em conjunto. Ela soltou uma risadinha enquanto guardava a escova de dente numa necessaire preta e sutil. Depois, se sentou na beirada da cama e começou a abotoar a blusa, em silêncio.
                O celular de Marcos denunciou a chegada duma nova mensagem de texto. A remetente era verônica, a mãe de Glenda, que morava com o esposo no sudeste.


Não deixe ela abortar! De jeito nenhum!

Dizia a mensagem. Seu corpo inteiro tremeu e o ar lhe escapou à respiração.                                                                 

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Todos Os Céus (Capítulo I)

I

           Glenda acendeu o Marlboro quase sem perceber. Já tinha o cigarro dançando aos próprios lábios antes mesmo que pudesse repreender-se. Havia-se esquecido até mesmo de abrir a janela pra avenida, pra que a fumaça não terminasse por infestar o apartamento todo. Estava tudo errado: o cigarro, a janela fechada... o bebê. O pensamento congelou seu coração por um segundo, mas o maldito só havia parado mesmo pra pegar impulso, porque agora batia a galope, como se prestes a saltar sua garganta afora e escapulir à sua vista a qualquer momento, perambulando e dando rebeldes cambalhotas, por aí, logo em seguida. Entretanto, como ela não era – ou ao menos não considerava a si mesma – colecionadora de erros, decidiu abrir a janela para livrar-se ao menos de um dentre tantos.
            Sugava a fumaça do esguio artefato branco para si, como se aquilo pudesse, de alguma forma, ajudá-la a acalmar-se, a libertar-se do aglomerado de pensamentos tempestuosos, a esquecer. Mas nada se esquece com tal e tanta facilidade. Aquilo ainda roubar-lhe-ia longas noites de sono, ela sabia, e o pensamento das madrugadas trevosas e do seu corpo banhado em suor frio, aliciando-se, revirando-se e remexendo-se através da cama e das horas, foi o responsável pela queda da primeira lágrima. Era mais uma lágrima de raiva que de qualquer espécie de melancolia. Era tudo culpa dele. Tudo. Era quase irracional o montante de dano aquele homem a houvera feito no decorrer de meros oito meses de um relacionamento (doentio). Glenda visualizou o rosto dele à sua frente, trajando aquele sorriso cínico de olhos apertados. Seu punho atingiu em cheio a grade branca que encimava a folha em tom metálico da janela, fazendo-a grunhir de dor, enquanto o cigarro descansava num cinzeiro que ficava sobre um centrinho próximo dali, queimando lentamente - a fumaça escapando para o mundo em meio a sedutores passos duma valsa sensual e perigosa.
            Mas desta vez a culpa não era só do maldito. Por mais que ela tentasse inconscientemente demonizá-lo, tinha também ela sua parcela de culpa, ponto final. Não, ele não a havia violentado nem a induzido de qualquer forma à sorte daquele resultado. Marcos podia ter seus (muitos) defeitos, mas violência, ela sabia, não era um deles. Ele era do tipo de homem que te mata na unha em meio a sutis gestos de mãos, sorrisinhos gentis e palavras doces, nunca içando o tom de voz, nunca levantando um punho ou uma palma... Sempre aquele calmo e estável sorriso invernal, parado no meio dum rosto praticamente impossível de se odiar. Mas ela havia chegado ao extremo do ódio; não era outra coisa, o que sentia quando tocava no nome dele ou quando ele lhe trespassava o pensamento. Maldito bastardo, Glenda pensou, devolvendo o cigarro à boca e deixando-se escorregar através da parede sob o peitoril, cansada demais para manter-se de pé.      

            Um bip no celular denunciou o recebimento duma nova mensagem no Whatsapp. Laura questionava-a acerca do resultado do exame, dizendo estar aflita e preocupada. Acabo de saber que estou completamente fodida, Glenda respondeu-a, atirando furiosamente o celular contra o encosto da poltrona, que ficava alinhada à parede adjacente à janela, logo adiante.
            Vamos lá, não poderia ficar naquele estado. Ele não merecia. Tem de se erguer e decidir o que fazer a seguir com a vida, Glenda disse a si mesma, com uma mão descansada sobre a fronte, num gesto de genuína preocupação. Obrigou-se a deixar os quartos do chão, para isso apoiando-se no assoalho frio com ambas as mãos. Pôs-se de joelhos e pôde ver a cidade lá fora, funcionando em clara e harmoniosa normalidade; bem, ao menos aparentemente. Carros enlouquecidos e sirenes de ambulâncias que perdiam a raridade, quando do fim do crepúsculo, que se aproximava, arrastando-se, enquanto a tarde sangrava.
            Quer dizer que agora havia uma pequena vida crescendo no interior de seu próprio ventre? A ideia acometeu-a como um vento gelado que levantou os pelos das suas costas, da nuca até à espinha. Puta que pariu. Quando ouvia as estórias acerca da estranheza daquela constatação, Glenda pensava tratar-se de simples clichê, como quando dizem “o primeiro beijo a gente nunca esquece”; pois bem, acontece que ela esquecera, sim, e com tanta facilidade que terminara assustada consigo mesmo, pensando na sua própria imagem como a duma pessoa fria. Havia sido o Alberto Guimarães ou o João Castro? Ah, para algumas questões nunca haverá respostas, mesmo. Mas aquilo era tão, mas tão diferente. A sensação era de que a partir de então todo o seu corpo era nada mais do que o envoltório protetor dum embrião viscoso e cinzento, que descansaria cega e confiantemente em seu útero por diversos meses, e então escaparia chorando num dia qualquer, demandando eternamente comida e atenção. Arrepiou-se de novo, esquecendo-se por um momento até mesmo de quem era o pai.
            Nascerá um bebê vermelho, chorão, cheio de necessidades, de rosto quase indistinto, que em poucas semanas será substituído por um tanto menos igual aos demais recém-nascidos, as madeixas de cabelo aparecerão com algumas semanas e, cara, eu tenho indiscutível certeza de que serão da cor de carvão, que nem os daquele maldito filho da puta. Três ou quatro meses depois, surgirão os primeiros dentes e os traços particulares da face já estarão quase perfeitamente definidos no rosto infantil. Então, o nenê vai começar a sorrir e vai apertar os olhos, e se tornará impossível pra mim, odiá-lo; mas será que eu o odiarei secretamente, em alguma parte obscura de mim mesma?
           
Perdida em meio a reflexões e devaneios que a fizeram perder a noção das horas, Glenda apercebeu-se dum pequeno detalhe no seu comportamento diante da notícia que a havia assustado. Em nenhum momento, pois mais ínfimo que fosse, naquelas últimas horas de pensamentos agitados e emoções confusas, ela havia considerado um aborto. Por que não? Pegou-se a si mesmo a mastigar aquela possibilidade. Sim, um aborto seria a saída perfeita pra situação. Era só marcar o dia, aparecer no local marcado, fazer a retirada do embrião e ir-se embora pra casa, pra dar prosseguimento à vida que continuava, não mais tendo que dormir sabendo que cresce dentro de si uma vida iniciada a partir do homem que tanto desgosto lhe despertara, e em tão pouco tempo.
            É, parecia a saída mais cabível praquela tempestade. Mas aquela última reflexão não estava disposta a abandoná-la com tanta facilidade. Por que a demora em optar por um aborto? Ou mesmo em considerá-lo? Tal solução mostrava-se tão adequada para si, que se sentiu estranha por, por tanto tempo, haver contrariado sua própria lógica. Talvez estivesse atordoada e nervosa demais pra pensar e acolher a solução racional. As lembranças de si mesma deixando o consultório com o resultado do exame eram imprecisas e nevoentas, como se lhe houvessem extraído a capacidade de pensar claramente. Manobrara o carro pra fora daquele estacionamento como faria um adolescente com duas semanas de aulas práticas na autoescola. Culpava a si mesma, ao Marcos Aguiar e aos céus pelo infortúnio das novidades. Queria chegar logo a casa, descalçar aqueles sapatos terrivelmente doloridos, tomar um rivotril e jogar-se à cama e ao sono sem sonhos. Mas, por algum motivo, ao chegar ao apartamento, a ideia já se lhe havia escapulido. Talvez porque alguma espécie de lógica coadunada à maturidade houvesse se formado em si, de forma que a ideia de simplesmente dormir e abandonar os problemas espraiados através da sala de estar não lhe pareceu, assim, tão promissora. Afinal, ela era já uma mulher de não menos que vinte e oito, e a solução através da fuga não mais, decerto, apeteceria seu espírito.
            Talvez não havia considerado o aborto de plano porque lhe havia agradado de alguma forma hedionda a ideia da maternidade. Santo Deus. O arrepio de novo. Glenda Moraes dentro de roupas infladas de mulher grávida, os seios inchados e a barriga cheia de estrias; visitas de parentes e chá de bebê. Um berço no seu quarto, um pequeno armário de enxovais; mamadeiras, chupetas, CDs com canções de ninar. A tontura arrebatou-a. Banheiro, ela pensou, mobilizando-se. Erguendo-se completamente desta vez, correu como uma lunática através do corredor, em direção ao vaso sanitário; encarou a água tremeluzente, a pairar no fundo de porcelana. Oops, lá vai.
            Depois de duas grandes torrentes de vômito, a campainha tocou. Ela ergueu-se lentamente, sentindo-se pálida e tonta, confirmou a palidez no espelho sobre a pia, enquanto lavava os resquícios da vomição com água que levava à boca através de mãos em formato de concha. Ainda deu tempo de fazer um breve gargarejo com o enxaguante bucal antes de ir atender a porta. Não precisou nem atender o interfone nem espiar através do olho mágico pra saber que se tratava de Laura. Abriu a porta e baixou os olhos, abrindo passagem pra que a outra mulher entrasse. Não havia ânimo pra cumprimentos ou recepções calorosas.
            Glenda fechou a porta atrás de si, passando o trinco dourado. Quando se voltou, Laura trazia nas mãos uma pilha de sacos de papel. Comida, Glenda soube. Soube, porque era dessa forma que Laura tentava animá-la, quando algum sério problema estava em curso em sua vida. Laura repousou as compras por sobre a mesinha de jantar da sala e moveu-se ao abraço de Glenda.
            - Que vibe errada, amiga – Laura disse, num quase sussurro.
            - Nem me fale – Glenda respondeu, com uma voz distante e cansada.         
            Laura largou-a, recolheu duas latas de Coca-Cola que havia repousado na mesa e dirigiu-se com elas à cozinha, aprumando-as no freezer, logo em seguida.
            - Cara, você acredita que o Sérgio (sim, o aquele meu ex meio bobão) desistiu de arquitetura quase no fim do curso e vai fazer o ENEM? Fiquei chocada, quando soube. E olhe que ele ainda mora com os pais, aos vinte e sete. Pelo visto fiz a escolha certa quando pus um fim naquilo. Já imaginou?! Eu querendo curtir meu final de semana de quase pós-graduada e o infeliz lendo Memórias Póstumas de Brás Cubas no sofá da sala?! Não é pra mim.
            Glenda notou sem grande esforço que, como não era raro, Laura havia transferido o peso da situação para suas próprias costas; assim, conversaria sobre amontoados de coisas aleatórias, com aquela velocidade estonteante que muito admirava a Glenda que a amiga não terminasse por morder a própria língua, dela tirando sangue, em meio àqueles dentes batendo em alta velocidade, para comunicar causos e estórias sem estrutura lógica ou qualquer tipo de correlação entre si ao longo de toda a noite. Isso, se Glenda não desse freio, conduzindo Laura em definitivo ao ponto chave daquele encontro do qual a casualidade passava distante. Laura prosseguia arranjando as coisas quase freneticamente por sobre a mesa de jantar.
            - Sabe quem eu encontrei na padaria usando dreads?
            - Laura – Glenda falou numa voz que era um chamado de volta à realidade.
            - Eu sei – Laura rendeu-se, cabisbaixa. – Então...
            O celular de Laura tocou. Ela tirou-o desajeitadamente da bolsa tiracolo que trazia à cintura e pressionou-o contra a orelha esquerda. Alô, disse. Quando percebeu de quem se tratava, Laura olhou em relance, desconfiada - quase envergonhadamente -, para Glenda, dirigindo-se rapidamente para a janela que agora tudo o que deixava entrar de fora eram luzes, de prédios e carros distantes, que se destacavam no negrume da noite, e correntes de ar meio frias, grande alívio frente à quentura que o dia havia trazido consigo, mais cedo. Dado, Glenda concluiu, recolhendo distraidamente uns pratos e xícaras no armário e os assentando na mesa, fazendo o possível para manter distância dos cochichos privados de Laura, que agora não só cochichava como também quase berrava de vez em quando, quando a paciência se lhe escorria embora.
            Glenda abria um pote de requeijão quando Laura tornou a aproximar-se da mesa, tentando camuflar seu rosto com autoconfiança e alegria inabaláveis, apesar da ciência de Glenda acerca de boa parte dos seus infortúnios pessoais.
            - Quer dizer, então, que serei titia – Laura disse acompanhada dum sorriso deleitoso.
            Por um momento, a força abandonou a mão de Glenda, que deixou a faca carregada de requeijão cair e emporcalhar boa parcela da toalha da mesa. Seus ouvidos não puderam crer no que haviam acabado de ouvir. Seu chão virou água.
            - Quê? – Ela guinchou, num tom estridente de voz.
            - Titia – Laura retrucou inocentemente, sem desfazer o sorriso. – Você está grávida, eu serei titia. Simples; né?
            - Por favor, diga que isso é uma brincadeira de mau gosto, Laura.
            - Espera. O que houve? – Laura pareceu genuinamente intrigada.
            - Você acha mesmo que eu vou ter o filho daquele canalha?
            Laura deixou o sorriso coalhar, enquanto encarava quase perplexa o que ecoara das palavras de Glenda. 
            - Amiga, você não está pensando em... – Laura começou, e foi obstada.
            - Abortar! O que você tem na cabeça, Laura, me diz?! Achou que eu descobriria que estou grávida do homem que me fez tão infeliz e decidiria por manter a gravidez? Pense, minha amiga...
            Laura nada respondeu. Envergonhada, com incredibilidade ainda nos olhos, dirigiu-se ao freezer, pegou uma das latas de Coca-Cola, abriu-a e despejou o refrigerante escuro no interior dum copo. Sentou-se na mesa de jantar, sem dizer palavra, e bebeu metade do líquido em grandes goladas quase sem intervalo.
            - Vai quente mesmo, essa merda – disse, amuada, os olhos cheios d’água por culpa do gás.
            - Laura, escuta – Glenda tentou redimir-se, num tom de voz deveras mais suave, enquanto sentava-se na cadeira que se posicionava de fronte para a amiga. – Não queria ter falado assim. É a pressão da situação. O dia foi tão corrido...
            - Entendo – Laura respondeu, tomando mais um gole de refrigerante, sem levantar os olhos. Encarava o vazio. – Quando vai ser? – perguntou.
            - Não sei, ainda – Glenda respondeu. – Não tive tempo pra pensar direito, ainda.
            - Está de quantas semanas? – Laura continuava com os olhos postos no nada, fazendo perguntas como quem as faria meramente por ocasião da obrigação que as formalidades impõem.
            - Seis semanas – Glenda respondeu, enquanto serpenteava uma faca coberta de patê de peru por sobre a superfície de um pão de fôrma.
            - Hm – Laura fingiu desinteresse. – Olha, tenho que ir.
            - Deixa eu ver se entendi – Glenda começou, repousando a faca por sobre o prato branco e apoiando os cotovelos na superfície da mesa, cruzando as mãos inquisitorialmente diante do próprio queixo. – Está puta comigo porque eu vou abortar esse embrião?! Pior, está puta comigo sabendo quem é o pai do embrião?! Em primeiro lugar, você não tem direito...
            Foi quando Laura se ergueu, bebeu os últimos goles da Coca-Cola e dirigiu-se sem cerimônia à porta do apartamento, sem nem por um instante olhar pra trás. Glenda ergueu-se abruptamente e chamou-a: Laura, e instantaneamente a tontura voltou a tomar conta de si; pensou que dessa vez terminaria por desmaiar, mas o desmaio não veio; foi só com o barulho do copo espatifando-se contra o chão que Laura virou-se pra examinar sua causa.
            - Estou bem, estou bem – disse Glenda, respirando fundo, recompondo-se.
            Laura voltou-se novamente para a porta e removeu a corrente dourada do trinco, livre para sair. Glenda mais nada disse, porque de repente percebeu que não havia nada que dizer. O corpo era dela, a porra do útero era dela; a decisão era dela. Ela estava certa.
            Mas, quando a porta fechou-se delicadamente (Laura não era do tipo que batia portas), o sentimento de profunda solidão abraçou Glenda, que se deixou sentar novamente na cadeira da mesa de jantar. Não era solidão nova; tal solidão tinha a idade da compra daquele apartamento, quando ela havia pensando que estava, enfim, livre para viver a própria vida, transar com quem desse na telha, comprar os próprios sapatos e ver os filmes que quisesse até o pico da madrugada. Porra, tudo ilusão. Agora estava tão distante dos pais e parentes antigos e esquecidos... E era filha única, pra completar. Sentiu-se inteiramente frágil por um momento, como se acabasse de haver tido contato direto com sua pura sensibilidade, a que ela tentara esconder por anos para lá de uma porta de dureza. Porém, uma sensação esquisita borrifou a atmosfera, e logo Glenda percebeu que algo tentava obliterar aquela solidão por inteiro, e, melhor, esse algo parecia estar tendo sorte com o tentame.
            Teve medo de si mesma quando percebeu que talvez sentisse, em algum lugar lá no fundo, que fosse a criança, que crescia, paulatinamente, a cada milionésimo de segundo, dentro de si, talvez, na inconsciência indescritível dos sentimentos túrbidos que a compunham, que estivesse tentando libertá-la inocente e naturalmente daquela escorregadia vida vazia que se formara em seu redor no decorrer daqueles últimos anos, pesados e estranhos.        

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Meanwhile, Inside Myself

Como um espectro de procura e deambulação 
Radicais mudanças de humor 
[A censura num mundo supostamente livre]
Em busca do definitivo caminho 
Da estrada que cruza os mundos 
Na direção da essência última 
E da dissolução 

Amor em canto nenhum - amor em todos os cantos
Amor nos rapazes e moças passados 
Que me legaram à memória só leve insinuação
Pactos, tratados e aumento de defesa bélica 
Monstros na escuridão, no chão sob a cama 
Canções de ninar e Rock n' Roll
Sertão de Alagoas e frio de Helsínquia 
Um voo deleitoso por sobre o planeta

Marte, Júpiter, Urano, Plutão
A lembrança dos pés pequenos, o chão frio a tocar
O sonho hermético dos estilhaços de vidro 
a lanhar profundamente as solas dos pés
A turva visão do futuro e das possibilidades
Um bilhão de livros que jamais serão lidos 
[Os ensinamentos de Buda 
e a teoria da relatividade] 

Um passo mais em direção ao inferno 
Um passo em falso e um tropeço no paraíso 
Haverá portões dourados ou somente a dama azul?
Haverá dias, séculos, milênios 
Em direção a lugar algum
Enquanto isso, eu deito-me pra dormir
[Estudando com afinco o método de Frabato] 

Procuro, mais ou menos sempre, por paz, 
Na Kabbalah e na imaginação 
No cinema barato de Hollywood, no poema, na meditação
Nos discos de vinil sem vitrola 
Nas teorias que jamais ganharão aplicação 
Nos romances que lentamente escrevo 
No corpo eterno e estrelado da Deusa Mulher
No fim de tarde das estradas da vida 

Um banho de mangueira no terraço
O nascimento do menino Jesus 
A Segunda Guerra Mundial

Sou senão a junção de todas essas coisas
Mas há outro em mim (escondido sob um milhar de trancas)
O que aspira à ascensão e à pura poesia 
Pura existência e desmistificado êxtase
[A criança, antes de terem quebrado seu coração]
Odisseia de mim; a busca que não se finda 
Eu, que pairo em qualquer lugar, 
Diante do perfeito espelho suspenso
Que flutua, inabalável, na imensidão do espaço.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Não vá pelos caminhos de dor



Não, não é o fim
O rio fez senão desviar-se do itinerário
Para só então, no fim dos intermináveis jorros
Desaguar no mar que lhe cabe
[Enquanto os mares forem mares
E os vulcões, vulcões]

Não vá pelos caminhos de dor
Que nunca dão em lugar algum
Esqueça-se dos fantasmas
E dê asas ao ímpeto,
sempre em busca de vida
Dê asas à alma, que ela fará senão
Conduzir-te ao teu lugar devido

Não, não vá pelos caminhos de dor
Que neles não há qualquer compensação
Vai e alumia os caminhos obscuros
[A Criança a acompanhará]
O mundo pode ser morto
Mas a ele podes reavivar
Ou dar-lhe asas

Não vá pelos caminhos de dor
Que foi por intermédio deles que vim
E digo-te, com convicção, que há outros
Menos doloridos ou escuros.