sábado, 20 de abril de 2013

Terra Prometida

               

Algumas  noites, em sonho, uma imagem me perturba.
               
                Vejo a vida de fora, como uma cidade distante no horizonte, convidando-me a entrar. Mas não consigo mover meu corpo. Estou preso em algo e não consigo enxergar nada aos arredores, apenas a imagem, longe de meu alcance. Quantos anos se passaram desde que eu estive lá? Se é que algum dia estive. Lá, tudo parece ser ensolarado, fresco e feliz. Eu fico preso lá fora, no vácuo, com um frio que congela minha carne e meus ossos.
               
                O som de belas canções escapa das muralhas do lugar. Vozes doces, azedas e amargas; todas harmoniosas e nunca fora do perfeito tom. Um velho homem no topo do mais alto monte enverga uma velha guitarra, mas seu som é moderno, progressivo. Em vez de corvos, apenas pombas brancas, águias e gaivotas atravessam os céus do lugar. Há mar do outro lado. Não o vejo, mas sinto. Mar morno, calmo, acalentador. De alguma maneira, ouço o som de risadas infantis, canções de ninar e as ondas batendo contra as pedras.
               
                A primeira lágrima cai. Como poderei chegar lá? Lá estão todos os que me são importantes. Lá estão meus sonhos e todo o meu futuro. Por que não sou capaz de alcançá-los? Sinto como se não pertencesse àquele mundo. Como se meu mundo se resumisse somente o lugar onde permaneço: escuro, frio, vazio.
               
                A visão chega mais perto, embora eu continue impossibilitado de me aproximar. Chega mais perto apenas para me mostrar como todos estão tão felizes. Seus sorrisos são espontâneos e suas gargalhadas são incessantes. Ninguém parece estar dando conta de que eu não existo. E se eu nunca existi? Meus pais estão lá. Eles estão entre as mesmas pessoas, mas aparentemente não têm muita proximidade. Eles são jovens. Meu pai parece-se exatamente como eu. Estão mais felizes do que jamais vira.
               
                A segunda lágrima cai. Fora da cidade, nada existe. Está tudo escuro. Mas ela está bem protegida por guardas vestidos de branco e uma sublime luz paira acima de tudo e de todos. A qualquer momento, em qualquer lugar, o que pode me dar a garantia de que eu vivo? Se tudo não for mais do que a materialização de um sonho infundado? As falhas desse sonho seriam o sofrimento? Os pesadelos que escurecem o mundo? Demônios? 
               
                Por dentro, quase nada consigo sentir. No vazio, a falsa segurança e as falsas necessidades logo são ofuscadas pela verdadeira existência. Seria eu privilegiado ou acometido de injustiça, por ser capaz de ver?
               
                Todos os que eu conheço estão lá, lutando por coisas que não existem. Sucumbindo-se a vontades irreais e sonhos egoístas. Como alertá-los de que estão desviados de seus caminhos, se não posso sequer penetrar nos muros? Algo sussurra em meu ouvido que eu estou livre. Então, esta é a liberdade. Ver a vida de um ponto de vista que não pertence à própria vida. Eu quero salvá-los a todos, mas a voz me diz que não cabe a mim. Que todos eles terão que ver por si mesmos. Que nada pode ajudar um homem a subir um monte, que não seu próprio esforço; fora dessa inalterável verdade, tudo são mentiras reconfortantes.
               
                Nos céus, agora percebo, uma batalha invisível acontece constantemente. Luz tentando afastar espectros negros que se alimentam de vontades. Na verdade, não há disputa. Há uma estranha e inexplicável harmonia.

                Estão todos comemorando por comemorar. Tudo ao seu tempo, a voz volta a sussurrar.

                E, lá em cima, no topo do mais alto monte, um velho homem, que não é menos comum que qualquer outro, conduz toda a vida de todo o restante dos povos com maravilhosos solos de guitarra.