segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Piscina de Folhas


Não é quando meto a língua e os dentes, a rezar 
Pedindo aos céus como um tolo irremediável; 
Ou quando peço proteção e guarda 
De anjos fortes, em detrimento de minha fraqueza; 
Ou mesmo quando doo e faço sorrir, 
Com a intenção oculta de merecer recompensa - 
Não é assim que me aproximo do divino:
Mas quando caminho com minhas próprias pernas 
Em direção a este enigma inalcançável [e eterno] do Eu
- Só então, e não de outra maneira, é que encontro luz 
- Só então, e nunca haverá de ser diferente, 
Sinto-me mais próximo do que chamam [Deus]
                                                              [d'Eus] 
                                                                [d[EU]s] 

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

[Análise - Livro] Demian



                Demian é uma estória sobre o Eu
Anti-maniqueísta, anti-conservador e em oposição a protótipos, Hermann Hesse nos apresenta a estória de Emil Sinclair, um menino europeu de classe média, do início do século XX, pré Primeira Guerra Mundial. O relato é do próprio narrador-personagem, que enceta a obra nos contando acerca da sua mais velha infância, em que tudo era brincadeira, harmonia e pureza do lar. 
                A primeira imagem que Sinclair nos forma à consciência é sua convicção prematura da existência de dois mundos; em um deles, estavam seus pais, suas irmãs, seu lar - um mundo correto, cheio de luz, cheio de sinceridades e dignidade, um mundo assenhorado por Deus e pela moral; no outro, estavam todas as coisas escuras da sua existência de menino: os relatos dos roubos, dos assassinatos, dos estupros, da má fé, da crueldade. Nas fazes menos tardias da faixa de tempo que o relato cobre, Sinclair começa por interessar-se, mesmo que inconscientemente, pelos mistérios que encobriam aquele mundo escuro, de que tão pouco sabia. Sinclair, a pequenos e tímidos passos, irrompe na porta sutil que leva àquelas intermináveis sombras, sempre que se lhe é dada a oportunidade; mas sabe ele que bastava voltar correndo para a porta de casa e seria acolhido novamente por toda aquela avalanche de pureza e bons ventos, pelo colo de sua mãe e pela totalidade daquele mundo pueril e limpo.   
                Seu primeiro grande acesso a esse outro lado se dá através de um conhecido de dois conhecidos seus, Fraz Kromer, um tipo muito pobre e sujo, a representação perfeita daquele outro lado que tanto despertava a curiosidade de Sinclair. Um dia, dirigem-se eles – Sinclair, Kromer e os outros dois – a um passeio vagabundo através da cidade, o que os leva a um local onde se despeja lixo. É aí em que, para que não fosse visto como garoto mimado e riquinho, Sinclair conta-os acerca de um roubo de maçãs, que teria cometido com outros amigos, em um pomar das redondezas; o roubo nunca existira de fato. Sinclair é seguido por Kromer até à casa, em que Kromer entra sem ser convidado, dizendo que o denunciará e, com isso, ganhará dois marcos de recompensa, por ter pego o ladrão. Sinclair sente-se, pela primeira vez, na iminência do abandono daquele lado carinhoso e cheio de luz; sente-se como se houvesse misturado duas coisas que não se pertenciam uma a outra. Kromer havia entrado em sua casa, o ponto em que todas as coisas boas do mundo branco se encerravam, e isso, funcionando como simbologia, apresenta a primeira miscelânea daqueles dois mundos que Sinclair tanto queria que permanecessem separados. Sinclair tenta convencê-lo de diversas formas a não caguetá-lo, oferecendo-lhe um velho relógio de prata de seu avô, que trazia ao pulso. Em vão, Kromer diz que ele terá que conseguir o mesmo dinheiro da recompensa, os dois marcos, se não quiser ser denunciado. 
                Inicia-se, então, o primeiro inferno de Sinclair, perdido como se houvesse esquecido o caminho que o levaria de volta ao mundo branco. Não tinha coragem de revelar a situação aos pais, porque toda a pureza do seu gracioso lar estaria corrompida, visto que ele, ora, seria visto como um mentiroso (Sinclair havia jurado por Deus e pela salvação de sua alma que o que contava, acerca do roubo, era um fato), e mentira era coisa que não cabia naquele mundo. Ele torturou-se e passou a fazer a vontade de Kromer, roubando-lhe comidas e dinheiros, para que ele pudesse, um dia, ser perdoado por aquela dívida. A sensação de estar em dívida com alguém foi como que o inferno para a personagem, que carrega o receio da dívida por grande parte do restante das páginas da estória. Sinclair sente que não mais pertence àquela pureza, àqueles amores, àqueles domingos, àquelas canções natalinas.
                É aqui que primeiro conhecemos Demian, um enigmático rapaz que passa a interessar-se por Sinclair. A primeira conversa que têm versa sobre a estória de Caim e Abel, a que fora passada a eles através das lições da escola. Max Demian questiona a moral daquele conto, fazendo com que Sinclair passe a questioná-lo também. É aqui que nos deparamos com a primeira quebra de paradigmas encetada pelo protagonista, que agora perde horas questionando a natureza, e até mesmo a veracidade, daquelas histórias seculares, impostas como dogma. Demian diz que a “marca” que Caim levava no rosto era nada mais que seu olhar, olhar de homem determinado, forte, implacável. Faz ainda Sinclair perguntar-se se o que teria acontecido não teria sido mais como uma história em que o forte (Caim) teria subjugado o fraco (Abel) [negligenciando o fato de terem sido eles irmãos ou não], e todo o restante do rebanho dos fracos haveriam se unido para escrever uma história que demonizasse todos os fortes para a eternidade. Após a conversa, Sinclair passa a sonhar com Demian frequentemente. Afirma que, em alguns sonhos, Kromer o obrigava a fazer atrocidades e, em outros, ele o prendia contra o chão, com os joelhos sobre seu peito. Em um desses sonhos, Sinclair percebe que não é Kromer quem o tem detido sob os joelhos, mas Demian, e então ele sente como se aquilo não fosse doloroso. É então que percebemos que o interesse que Sinclair desenvolve pelo mundo escuro não se dá pela parte do mundo habitada por aqueles como Kromer, mas pela parte habitada por aqueles como Demian.   
                Max Demian é um rapaz com rosto de menino e de homem ao mesmo tempo, de fronte farta e olhos sábios. É ele quem, de alguma maneira, liberta Sinclair do tormento de servidão a Kromer, que agora tudo o que faz é evitá-lo, com medo do quer que Demian tenha lhe dito/feito. Antes de libertá-lo do tormento, Demian o diz que um homem apenas teme quando deve, e que deve ele enfrentar o medo até o fim. Quando Sinclair está livre, decide contar para os pais o que se passou naqueles últimos tempos, para que retornasse pelo menos a ilusão do primeiro mundo, e ele coloca-se na estória do filho pródigo, que retorna, após o tormento, para a casa paterna. É então que Sinclair percebe que aquele mundo escuro agora era parte de si. Todos aqueles pensamentos, aquelas questões, apoderavam-se agora de si, querendo ele ou não. Demian havia plantado a primeira semente da inglória jornada de Sinclair. Mesmo querendo voltar a pertencer ao mundo branco, Sinclair encontra parte de si querendo partir para desvendar o mistério daquele outro mundo amoral, insensível, cruel. 
                Sua relação com Max Demian não se intensifica em demasia, mas, ainda assim, eles mantém certo vínculo, como quando Demian, aos poucos, aproxima-se dele, na sala de aula, terminando por sentar-se ao seu lado. Em uma ocasião em particular, Sinclair abruptamente sente como se não houvesse qualquer existência humana naquele que está a sentar-se do seu lado. Quando se vira para o amigo, percebe que Demian encontra-se num estado de paralisia que o havia removido completamente da existência terrena; logo depois, Demian retorna a si, trazendo de volta a presença que Sinclair pouco sentira, naqueles instantes. Até uma mosca passeara por sua boca sem que Demian lhe prestasse atenção, naqueles instantes de transe, no meio de uma aula da escola. Em uma ocasião, Sinclair avista à figura de Demian a tentar pintar um escudo desgastado entalhado numa pedra que há de fronte à sua casa, o qual já havia sido alvo de uma conversa que haviam tido, logo após a discussão sobre a verdadeira natureza da história de Caim. Numa outra, os garotos da escola observavam um cavalo que havia perdido a força e caído no centro da rua. Sinclair observa a mesma natureza do rosto do amigo - jovem e maduro ao mesmo tempo, mas então consegue atribui-lo mais qualidades agora perceptíveis: Demian encerra, para Sinclair, em seu semblante, o masculino e o feminino, o novo e o antigo, algo novo e milenar, a besta e a divindade; uma criatura-enigma que vivia, de alguma forma, fora da rota daquele planeta, que manipulava as pessoas de alguma forma, intimidava outras com simples palavras - que lia pensamentos e tinha respostas para todas as coisas.  
                Nas conversas subsequentes entre Max e Emil, Max Demian prima sempre pelos assuntos que façam Sinclair, de alguma forma, questionar a moral daquele mundo em que vivem. Numa das conversações, acerca da vontade, Demian diz que o que ele faz verdadeiramente não é ler pensamentos, mas observar cada parcela dos comportamentos daqueles de sua convivência; diz ele que, dessa forma, torna-se tarefa simples antecipar seus movimentos e reduzi-los a nada mais criaturas previsíveis. Demian diz, também, que a vontade humana não é livre, abrindo portas para a discussão espiritual/destino, que a partir daqui se torna constante. Diz ele, em contrapartida, que a vontade endereçada é uma arma poderosa, o que faz Sinclair questioná-lo: se a vontade não é livre, como endereçá-la? Demian responde que o fato dela não ser livre não significa que o homem não tenha qualquer controle sobre ela, mas que ele não pode mudá-la, porque a alguns homens sempre interessará um tipo de coisas, e a outro, outro tipo muito distinto; de certa forma, que as vontades estão ligadas ao mais íntimo ser e que tentar mudá-la configura intento para tolos. Diz, por fim, que aquela vontade, se cumprida como se apresenta no berço do íntimo ser - sua não-realização torna-se impraticável. 
                Nos discursos de Demian, o fraco, o covarde e o ajoelhador são sempre desprezíveis e escória da raça humana; diz que são eles os autores das falsas divindades puramente benignas, iluminadas, paternais. Demian diz ainda que toda a parte obscura do mundo não deve ser atribuída ao Diabo, porque são elas também criação daquele mesmo Deus que todas as coisas da existência criou, tornando-o, assim como suas crias, o bem e o mal, o resumo de todas as coisas manifestadas, Jeová e Satanás numa única figura: a quebra do maniqueísmo e o ponto final na doutrina dos fracos.
                Em seguida, Max recomenda que Emil viva dos seus impulsos e das suas fantasias mais inerentes, que viva das suas ideias íntimas e do que puder extrair dos seus pensamentos e sonhos. Diz ele que a única moral existente deve ser a sua própria, e que não se deve dar ouvidos ao que se lho é imposto. Continua dizendo que o homem vulgar acredita estar fazendo o bem simplesmente porque está confortável em relação às regras que se apresentam a si externamente, mas que, por não realizar aquilo que brota do seu íntimo, entra em rota de colisão consigo mesmo, desvia-se do seu próprio caminho em direção a si. 
                Diz Demian, ainda, que nem todo se bípede é homem; que muitos não vivem, mas apenas vagam.
                Durante sua puberdade, Sinclair sente-se como se desse adeus definitivo àquele mundo branco, que agora já não existia, porque Demian o havia mostrado que não havia razão para separar o branco do preto, quando tinham ambos o mesmo pai, e aos poucos afasta-se da pureza da casa paterna, dos braços da mãe, de tudo que um dia já lhe havia sido tão delicioso. É então que Sinclair vê-se encurralado pelos sonhos sensuais de natureza primitiva, pelo nascimento de um outro, estranho e até deprimido. É nessa época que Sinclair se muda, para dar início aos estudos do colégio. Torna-se, então, um adolescente boêmio, vendo pouco significado nas coisas, prestando pouca atenção nos estudos e muita atenção no vinho. 
                É nessa parcela que se intensifica a busca de Emil Sinclair por aquilo que havia em seu interior. É então que vê a imagem do que se tornaria sua musa inspiradora, uma garota de cabelos claros que ia passando por ali, com a qual nunca tivera (ou teve posteriormente) contato. Ele a atribui o nome Beatrice e passa a tentar desenhá-la no seu quarto de estudante. Quando consegue um desenho que, afinal, o agrada, percebe que este se parece em demasia com algo que já conhecia. E então vê: Beatrice encerrava no seu rosto traços de Demian. Não era somente a imagem isolada da menina da rua ou de Demian, mas a imagem de todas as coisas que possuíam relação consigo: seus desejos, seus sonhos, seus objetivos – era a imagem do seu espírito, do seu destino, de todas as coisas que sua vontade era capaz de cobrir. Era essa imagem que agora tomava o lugar de sua mãe, nos seus sonhos. Não era mais o colo de sua mãe que o esperava num iminente regresso a casa, mas o colo de Beatrice, aquela criatura mulher-homem, deus-besta, imaculada-prostituta.
                Mais à frente, Sinclair envia a Demian um desenho de algo que o havia invadido os sonhos: é a imagem de um pássaro, porventura, um falcão, que tenta retirar-se da casa dum ovo. Demian o responde posteriormente com as palavras: “A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo. A ave voa para Deus. E o deus se chama Abraxas.” Abraxas era uma antiga criatura de mitologias esquecidas no tempo, o que logo Sinclair veio a descobrir, aquilo a que Demian já havia aludido algum tempo atrás, a sintetização de bem e mal, Deus e Diabo, numa só criatura, a única existente, mãe de todas as coisas.
                Com essas palavras aparentemente confusas, Sinclair ainda não vê pistas de como exteriorizar de vez esse seu ser interior, de como direcionar sua vontade de uma vez por todas ao seu destino e de como se desfazer, por fim, de todo o restante das coisas. Encontra, então, Pistórius, um fenomenal tocador de órgão, que passa a apreciar, indo vê-lo tocar quase todos os dias. Eles tornam-se amigos e encetam a prática de uma espécie de meditação em que se contempla o fogo; o fazem nos aposentos de Pistórius, onde perdem horas em horas em silêncio, em busca de alguma resposta interior. Pistórius o diz que cada homem e cada mulher existe independentemente de todas as outras coisas, que o que existe fora da concepção do homem, não existe de todo, e que o objetivo de cada um de nós é nos encontrarmos com nosso próprio destino, com nosso espírito, com nosso eu interior. É ele simpatizante da doutrina que prega a existência do deus-único Abraxas. Diz que é antigo aspirante a pároco, que sente-se bem próximo a pessoas ligadas à religião, mas que sua crença é deveras diferente das deles, e que não havia, portanto, sentido em tentar convertê-los. Diz também que, de qualquer forma, terá de regressar à igreja, para tornar-se organista oficial. Sua forma de pensar é semelhante à de Demian, de acordo com a qual deve-se apenas viver aquilo que brota do interior, dos desejos e dos sonhos, não se dando qualquer importância a influências morais, que nada fazem senão uniformizar e transformar cada individual num grande rebanho homogêneo. Diz ele que há duas espécies de homens: os que caminham em direção a si próprios, ao seu destino, aos seus sonhos individuais; e os que caminham em direção ao rebanho (e com o rebanho), em busca de qualquer melhoria para a raça humana, e que não sabe diferenciar ideais coletivos de ideais particulares. Sinclair rompe parcela de sua relação com Pistórius quando, sem a intenção de magoá-lo, ele diz-lhe, de certa forma, que é inútil perder tempo com sistematizações e escritos de religiões antigas e obsoletas, o que era prática constante do amigo. 
                Adiante, Sinclair por fim encontra a personagem que encerrava em sonhos, aquela mulher máscula que tinha os traços de Demian, que o esperava nos sonhos, no lugar da mãe. Descobre então que a mulher é a mãe de Demian, e que chegou o momento de regressar ao seu colo. Ela lhe revela seu nome, Eva, e diz que poucos são os dignos de tal revelação. Demian diz que ela o conhecia porque ele a havia dito que Sinclair carregava a marca de Caim nos olhos, desde o tempo em que o conhecera. Demian passa a participar da religião daquela mulher, que tem o rosto de todas as coisas, os braços maternos da divindade e o tom paterno da animalidade. E aos encontros daquela religião vão astrônomos, céticos, e toda sorte de pessoas, daqueles que haviam aberto os olhos e constatado a verdade de Abraxas, a síntese do bem e do mal. E era só questão de Emil focar o pensamento nela para que ela viesse ao seu encontro. Sinclair sente grande ardor por ela, e passa a desejá-la. Ela diz que apenas integrar-se-ia a ele quando ele a desejasse por completo, sem receios. Eva era sua mãe e sua amante, o corpo eterno e estrelado dos céus e o dourado do brilho do sol.
                Numa tarde como qualquer, Sinclair direciona todos os seus pensamentos a Eva, e então lhe aparece Demian, que é mandado no lugar da mãe. O menino-homem tem uma expressão trágica no rosto. Diz que havia se alistado para o exército, e que cedo Sinclair seria convocado também. As relações do país com a Rússia haviam vacilado. Era o início da Primeira Grande Guerra. 
                As últimas observações de Sinclair são direcionadas àqueles homens que na guerra lutavam, obstinados e maduros, embriagados pela imagem do destino e excluindo qualquer possibilidade de conforto. Ainda que o mundo permanecesse imaturo, confinado num modelo estranho à ponderação e à harmonia, aqueles homens se apresentavam ali para cumprirem seu destino, e é justamente no cumprimento de cada destino individual que a humanidade finalmente parece encaminhar-se para um termo. 
                Numa das batalhas, Sinclair vê num relance uma cidade nos céus, em que vivem milhares de seres como estrelas, da qual uma deusa com o rosto de Eva é a principal divindade, de sua fronte jorram estrelas que regressam aos céus, em belos movimentos curvos. 
                Com um ferimento de batalha, Sinclair desperta, e tem o amigo Demian ao seu lado, próximo à morte. Demian o diz que terá que partir, que quando Sinclair dele necessitasse ele não mais se dirigiria a ele a trem ou a cavalo, mas que estaria dentro dele próprio. Demian finaliza suas palavras pedindo para que Sinclair receba o beijo que Eva havia mandado através dele. Sinclair termina, então, seu relato, dizendo que tudo o que veio em seguida o causou dor, porque sua existência terrena ainda acontecia, e ele estava separado do seu guia e de sua amante-mãe, mas diz também que se refugia sempre naquele eu interior, que finalmente havia encontrado, aquele ser que sintetizava a imagem de todas as coisas relativas à sua vontade: seu espírito e seu destino.                           

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

[Análise - Livro] Ensaio Sobre a Cegueira


Estamos todos saturados, cheios - não aguentamos mais sequer ouvir falar - de histórias de ficção que envolvem apocalipses zumbis, e linhas de enredo similares. Esta espécie do gênero horror, por mais atual que pareça ser, vem sendo explorada – digamos estuprada – por uma variadíssima gama de diretores de cinema no decorrer das 4 últimas décadas; não apenas por diretores de cinema, mas também por aqueles do lado da ficção, na literatura. Tanto já faz parte da psique contemporânea, este tipo de estórias, que já sabemos de cór a procedência daqueles que conseguem sobreviver em meio ao modelo de drama que se apossa do mundo, do qual poucos são capazes de escapar; veem aqueles que um dia foram seus conhecidos a transformar-se em criaturas animalescas, com apetites voltados à carne e ao sangue. Outro grande problema enfrentado por quem protagoniza essas dolorosas jornadas é o fato de que o mundo deixa de funcionar, após certo período de tempo, principalmente porque há aqueles com medo de ser infectados ou com medo de ser comidos pelas criaturas que agora parecem dominar o mundo, e não há maneira de raciocinar saídas, para que os danos não sejam tão intensos. Entre esses que se infectam ou têm medo demais de infectar-se, estão aqueles que controlam as válvulas de encanamento, os que controlam as aparelhagens responsáveis pelo fornecimento de energia elétrica, os que controlam a distribuição de comida pelos centros de compras... O trânsito é acometido pelo caos, simplesmente para morrer por completo, pouco depois. Os sobreviventes agora lutam para manter-se vivos, num mundo inimaginavalmente diferente daquele que um dia conheceram. 
                Mas, José Saramago, o português vencedor de um Prêmio Nobel, nos oferece uma situação milhares de vezes mais dolorosa que essas que nos foram oferecidas pelos aclamados contos apocalípticos de zumbis, porque não há zumbis. A grande diferença para “Ensaio Sobre a Cegueira” reside no fato de que os humanos, no conto de Saramago, continuam a ser humanos, com a simples diferença de que: não veem. Os olhos dos “infectados” não mais veem, porque um manto de luz os aparta de toda a realidade visível; não se trata daquela escuridão características que, naturalmente, os cegos ordinários enxergam – não, em vez de escuridão, o que veem é um grande e interminável mar de luz. O primeiro homem a cegar está em seu carro, no trânsito corrente, quando percebe que já não mais é capaz de ver. É apenas questão de tempo, até que dezenas, centenas, milhares de pessoas estejam infectadas pela cegueira instantânea, que não faz diferenciações. O governo do local em questão decide, devido à alta capacidade de dissipação daquele suposto vírus, tomar medidas, literalmente, drásticas. Decidem-se por trancafiar os primeiros atingidos num antigo hospício, enquanto não houver solução iminente. 
                O último ser humano de que temos notícia de que tenha conservado a visão é a mulher de um dos homens confinados, um médico, que finge a cegueira para poder acompanhá-lo naquele afastamento definitivo da comum civilização. E ela passa a ser nossos olhos, no decorrer do conto, porque história de cegos descrita por mais um cego não se parece com um empreendimento muito promissor. 
                José Saramago, na sua maneira peculiar de desenvolver diálogos, não se utiliza de sequer um ponto de interrogação, ou ponto de exclamação, ou travessões para enunciar diálogos – nada. Tudo são vírgulas, pontos e parágrafos, o que não quer dizer que a leitura vá se tornar incômoda ou enfadonha, pelo contrário, em minha opinião, os diálogos tornam-se mais “fluidos” com seu estilo com o qual os apresenta. 
                Por tratar-se mais de uma alegoria que de uma estória fictícia (ainda que a maioria das alegorias tenham uma estória fantasiosa como plano de fundo), é-nos negado os nomes de todas as personagens presentes no conto. Sabemos quem eram, suas profissões, alguma característica que carregavam, quando todos podiam ver, mas nunca seus nomes. Quando questionados acerca de seus nomes, não é raro que um cego ou outro retorca com um simples “não importa quem sou, agora sou só mais um cego”. A última mulher a ser capaz de ver é ninguém mais que simplesmente “a mulher do médico”. O médico é o oftamologista que examinou aquele que foi o suposto primeiro homem a cegar, quando dirigia seu automóvel no trânsito. Ele também examinou mais das personagens do arco principal: o garotinho estrábico, que, logo no início do confinamento, quer mais nada que não a mãe, a rapariga de óculos escuros (todo o português original, com que a obra foi escrita, permaneceu inalterado), o senhor com um tapa-olho. 
                Estão todos agora confinados ao hospício, todos divididos entre as camaratas. Todos os dias irrompem mais e mais cegos, perdidos, tendo se despido de toda a dignidade, para encontrar um mundo ainda mais indigno: digno de ser chamado inferno. As comidas inicialmente vêm periódicamente, mas logo começa a tornar-se insuficiente para que se alimentem tantas bocas famintas. Os soldados da portaria estão afastados demais para simplesmente permitirem que qualquer um dos cegos se aproxime, seja para reclamar da pouca comida, seja para requisitar um analgésico, para que o coitado que levava uma ferida gangrenada na perna não sucumbisse e morresse na dor. 
                Quando do advento do homem que possui uma arma, que está na companhia dum cego “de verdade”, dos que não enxergam desde que nasceram, o que faz dele um semi-rei, todos se vêem na iminência do advento de um novo regime no hospício, e é o que ocorre. O homem malvado, que tem a arma, requisita toda sorte de pertences valiosos, para só então permitir que alguma da comida prossiga para as camaratas. Ora, as comidas ainda assim se lhes vão em pequenas quantidades, e, se ainda almejam por sobrevivência, devem eles obedecer aos novos tiranos e racionar toda a comida. E esses pertences se vão como pagamento pela comida que é sua por direito.
                A situação apenas piora. As mulheres são estupradas “por sua vontade”, porque se não fossem voluntárias, não haveria mais comida para elas, para o pequeno menino estrábico, para os velhos, para ninguém. Todos sucumbem num mar de secreções, dejetos, excrementos, que só quem é capaz de ver é capaz de evitar, pelo menos quando não se tem alguém que enxergue bem próximo; ainda assim, quase nada, a que ainda vê, é capaz de fazer, porque eles são muitos, e ela é só uma. 
                Somos afrontados pela imagem de uma moral humana, tão repulsiva quanto real, de cegos aproveitando-se da cegueira dos outros, tanto para demarcar poder, quanto para garantir a refeição da noite. Quando se trata de manter o corpo vivo, de tudo somos capazes de fazer – isto é parte do que Saramago quer nos dizer; poucas barreiras há entre o homem despido de dignidade e o homem selvagem, primando por sua própria sobrevivência. Outra coisa que o autor quer nos dizer é que só sobrevivem (a morte de que falo, em detrimento dessa sobrevivência, não é somente a morte física, mas a morte da alma, para que se dê lugar ao animal faminto e descontrolado), afinal, aqueles que continuam unidos, como um só corpo em meio ao desastre do inferno que vai, ao poucos se formando. Este corpo único de vários que se forma é o corpo do arco central: a mulher que ainda vê, o médico, a rapariga dos óculos escuros, o menino estrábico, o velho com o tapa-olho, o primeiro cego e sua mulher. E uma relação de amor se impregna em cada um deles e em todos, uns pelos outros: mas não o amor banal e profano dos que não conhecem toda a bruteza da vida, mas o amor que serve de amurada, para que nenhum deles caia no abismo eterno de estar cego, num mundo tão vasto.
                Depois descobrem eles estar livres para regressar ao mundo que um dia os acolhera: mas veem eles que liberdade é nada mais que uma palavra fora de contexto, quando tudo o que encontram é um mundo abandonado, porque já quase ninguém na superfície da terra é capaz de ver. Tudo o que veem é a luz eterna que os impedem de ver qualquer coisa. Os cegos movem-se por agrupamentos ou sozinhos: os que movem-se sozinhos estão vivos apenas para contrariar o alerta comum, que parece pairar no ar, que diz que não pode haver vida a um. Estão todos a procurar por qualquer comida que tenha restado, por qualquer lugar em que possam passar mais uma noite.
                Os santos da igreja que a mulher que ainda vê visita com o marido estão todos vendados, porque estiveram sempre vendados, e foi alma que se relaciona bem com a verdade que foi capaz de cometer o ato de vendá-los. Porque eles sempre estiveram cegos, e nós estamos por nós mesmos neste mundo. E não apenas os santos estão cegos para nós, como nós estamos cegos para nós mesmos, e para todo o restante das coisas. Estamos cegos, porque passamos a vida a viver como se fôssemos muito mais do que apenas corpos vagantes, tão necessitados de comida, quanto de água, quanto de proximidade daqueles outros que nos aquecem e nos defendem da queda no grande abismo de estar cego, como todos estamos, num mundo, como supracitado, tão vasto.  
                Para não terminar por ofuscar o brilho incomparável da primeira leitura, encerro meu relato por aqui, porque a obra é digna de ser vivida por quem por uma alegoria sobre todo o gênero humano se interessar.                     

domingo, 12 de janeiro de 2014

O Vagabundo na Chuva


                Seis letras, começa com v, prevenção de doenças virais e bacterianas, o rapaz falava a si mesmo, como se a descoberta daquele enigma fosse conduzi-lo a qualquer lugar, longe daquela estação cinzenta de trem. O relógio beira às dez horas, mas, para quem não tem para onde voltar, os ponteiros do relógio são nada mais que linhas dançantes, sempre contínuas em seus inacabáveis movimentos. O lugar tinha tanto cheiro da sopa que o vigia preparava para si, alguns metros afastado, quanto da lama que as botas, impermeáveis ou não, dos transeuntes traziam em suas solas. O converseiro começava a diminuir, mas o tamborilar da chuva sobre os telhados dos edifícios vizinhos e sobre a cobertura do próprio prédio da estação ainda faziam questão de atuar sonoramente.
                Estava frio – tanto que o rapaz vestia duas jaquetas, uma por sobre a outra, para que o frio não o fizesse vítima. Antigamente, bem que ele poderia surpreender algum senhor que ia passando para pedi-lo um mísero cigarro, e mais um para o próximo senhor, e mais um para o próximo; o cigarro o mantinha quente. Mas, o fato era que o rapaz havia largado o vício, quando começaram a imprimir e publicar aquelas revistas de teor sério, falando tão mal da tal da nicotina, como se fosse uma espécie de besta do apocalipse, e talvez fosse. Agora, como acontecia com as aranhas, sempre que ouvia a palavra, ou sempre que via um senhor ou senhora a sacar o objetozinho branco e esguio de suas carteiras, sentia algo como uma coceira – coceira de quem está inquieto. Minha senhora, a senhora tem netos? A senhora realmente quer vê-los chorando sobre um túmulo: o seu? Então é bom que deixe que a chuva apague a pequena chama do fumo, antes que a nicotina transforme suas entranhas em cinzas, o rapaz dizia para uma senhorinha dondoca que estava bem próxima, mas dentro de sua própria cabeça.
                O palavras cruzadas do periódico da tarde ainda espera por resolução. Decidiu pular aquela palavra de seis letras. Cinco letras, o que se carrega por penitência, contra a vontade de quem carrega. O rapaz se pôs a pensar mais uma vez, enquanto gotículas de água, que saltitavam de um guarda-chuva, tão negro quanto aquela noite era, de uma moça que passava ao largo, o acometiam. A mocinha o sacudia para obtê-lo enxuto. Ela tinha na boca um tom escuro de batom, cabelos cortados à francesa, pele branca como a neve mais pálida. Uma jaquetinha de couro escuro cobria parte de seu torso, pequenino como o de uma fêmea deve ser. Mas ela não o deu atenção. Passou ao larguíssimo, como se sentisse medo dele. Da boina maltratada, das roupas manchadas e desbotadas, das olheiras tão visíveis – visíveis mesmo sob a tosca iluminação daquela parcela da estação -, ou mesmo medo da sua atitude vagabunda, de sentar-se ali, como se nada tivesse que fazer, numa terça-feira, quando tantos outros ansiavam pelo retorno às suas respectivas casas, para desfrutar de suas tão merecidas (poucas) horas de sono; descanso de gente que trabalha. Fosse o que fosse, ela já ia ao longe, talvez para dormir e sonhar com um rapaz que tivesse com o que se vestir com dignidade.
                Fardo, ele arriscou, o que mais se carrega como penitência, que não um fardo? Acurado. O a da palavra fardo preenchia o espaço da segunda letra da palavra que pulara. Agora o rapaz tinha um _aci_a. Ainda não tinha sequer pista do que poderia ser. Ele fechou o jornal e avançou com os pés por sobre a pequena amurada, que servia para que as crianças não se precipitassem contra a linha de trem. Se o sono viesse, se o sono viesse... O rapaz provavelmente sonharia com as canções; especialmente aquelas que tinham o dom de fazê-lo esperar – e este não era um esperar ruim. Esperar, para que os descasos e os acasos pudessem ser conduzidos, do mais absurdo caos, à ordem; esperar por um trem que pudesse levá-lo, não para o lugar de onde viera, mas para qualquer outro lugar em que não houvesse algumas lembranças. Havia as canções que cobriam seus olhos com um véu de fantasia, também; que fazia olhar para todas aquelas pessoas, descendo avenidas e comprando automóveis, cantando jingle bells e tirando fotos de famílias, de outra maneira. Ou eram eles cegos, ou viam demais. Fossem como fosse, eram os acordes, os solinhos enfeitados de jazz, os suaves sons que os dedos faziam por sobre as teclas limpinhas de um piano, que inundavam seus sonhos mais profundos; e era por essas lembranças, que tinham mais de naturais e sadias que de febris, que ele acreditava ser dotado de alma. Mas sua alma tinha pouca serventia naquele mundo, naquela estação de trem quase deserta, sob aquelas roupas tão maltratadas.
                A estação está para ser fechada, disse um dos funcionários do prédio principal. O senhor espera por alguém? Dormirá por aqui mesmo? Espero por alguém, o rapaz respondeu. Se tivesse chance – e coragem – de explicar, engendraria toda a história de sua espera por si mesmo: um outro rapaz que ele acreditava existir lá no fundo, que não fosse tão preguiçoso e que não estivesse tão contente com tão pouco. É por mim que espero, é por mim.               A chuva não deu trégua; fazia que com o mundo parecesse pequeno, apertado, com todo mundo tentando evitá-la, para não apanhar resfriados, para não molhar seus pertences, suas roupas, seus sapatos, seus cabelos, suas caras pintadas... Eu? Eu não tenho nada disso, o rapaz pensou de pronto, e quis ir lá fora, na chuva, para ter a certeza de que o mundo continuava do mesmo tamanho.
                  Ele nem se deu o trabalho de se despir de nada, o sol da manhã cumpriria seu papel de secá-lo. Saiu e sentiu a chuva a molhá-lo por completo. Um ou outro que passavam pensavam estar vendo um louco, um bêbado, um desconsolado... mas ele era nada mais que um rapaz contente; contente, mesmo que não tivesse um tostão, ou um lugar para onde regressar. Mas o contentamento do rapaz se dava pelo simples fato de que ele estava ali, e estava chovendo, quanta pouca vida! E não passaria pela mais espertas das cabeças que ele era nada mais que um rapaz contente por estar chovendo. Não havia mais pessoas contentes por quase nada pelo mundo, por isso, do estranhamento.
                E, de olhos fechados, enquanto a chuva fazia poças por todos os lugares, e alimentava as pequenas plantas, e matava de frio os pobres mendigos que não haviam conseguido abrigo, o rapaz lembrava-se da imagem da boca delicada da mãe se movendo, para falá-lo com simplicidade, palavras que ele colocaria nas músicas, assim que conseguisse comprar um violão; vírgula por vírgula, parágrafo por parágrafo. Ora, o rapaz, corria agora; não uma carreira apressada, tensa, ansiosa: mas uma nada mais que apenas leve. Ele lembrava-se de quando pensara, numa juventude mais antiga, que poderia ter tantos amigos que perderia as contas, se as tentasse empreender somente com a ajuda dos dedos; ele queria viajar, ter malotes do dinheiro, fazer os passeios maravilhosos e descansar a beber do mais precioso vinho, na companhia da mais delicada das mulheres. Um cão, tão contente quanto o rapaz, agora corria; havia ele também se convidado à brincadeira. E, que engraçado, aquele cão era o único amigo que tinha. E estavam os dois, contentes, sob a chuva. Ele podia contá-lo no dedo, então as coisas eram deveras mais simples. Não havia sequer moedas nos bolsos do rapaz. Ele tinha nada mais nada.
                A vida havia morrido lá fora, porque a chuva a havia assassinado. E o rapaz corria, corria, com o cão a persegui-lo – corria rumo a qualquer que fosse o lugar: o derradeiro e inevitável destino de todos aqueles que tem olhos de ver e pernas de caminhar.