terça-feira, 30 de setembro de 2014

Época Errada

Por onde ando, com meu tolo sorriso
E meus pés desimpedidos, a roupa mal passada
Parado, devaneio pela atmosfera
Cara de madrugadas inteiras em ruminação
E me dizem alguns, me olhando:
Tu nasceste na época errada...

Deve de ser por culpa dos versos
Da música maltrapilha ou das opiniões
Do meu não querer saber e do meu querer saber demais
De coisas que não farão qualquer diferença
Qualquer dia desses haverei de entender...

Não é que haja nascido na época errada
É, talvez, simplesmente, questão de deslocamento
De calçar botas de lama numa cidade de gelo
De olhar para trás meio sem medo de tropeçar
De sentir coisas de que pouco já ouviram falar
Esses, que dizem a mim:
Tu nasceste na época errada

Não nasci na época errada -
Talvez tenha eu nascido errado, na época certa
Talvez seja essa minha vontade de ser homem,
De ser menino e de ser velhinho, tudo ao mesmo tempo
Talvez sejam estas minhas infindáveis buscas
Pelo senil tesouro prometido e abstrato
Das profundezas solenes do mundo

Talvez seja esta minha sede de canto, de água
De cama, das histórias empoeiradas e conversas de esquina
Talvez seja porque tenho quase sempre sono
E quase nunca sei dizer quase nada
Àqueles que dizem a mim:
Tu nasceste na época errada

Qual seria, então, a época certa?
A época certa será, talvez, amanhã
Que eu moldarei com minhas próprias mãos
Se a preguiça deixar...

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Épico dum mundo quase sem cor

Murmuram, os ventos, conversa conhecida
Dos senhores das calçadas, risos de gengivas, aposentados
Nas arenas esportivas, os gritos são iguais
E o que se ouve nos rádios, os crimes da noite
As bem-aventuranças da manhã
Quase tão fatais quanto a morte

Faz música, quem observa as beiras das estradas
As pradarias dançando à canção regida pela brisa
Os rumores silenciosos dum mundo senil, analfabeto
No horizonte, haverá sempre mais múltiplos, mais variáveis
Por enquanto, o horizonte afasta-se, sem recurso
O que aprendemos na vida é que não se chega nunca
A lugar algum

Eterno movimento, este jogo de luzes confusas
Essa eterna sala de espelhos, distorcendo-nos
Almas dançando num lago de luz, perdidas
Encontradas diante da vastidão escura do espaço
O tempo devorando-nos e cuspindo novas vidas
No interior escuro do ventre duma indefesa mãe

Os jovens guiam charretes através do sol do fim da tarde
Os velhos suspiram pela derradeira vez sobre seus leitos
Música surge dos céus e pincela a vida, sutil, sutil
E a arma dispara – e as vidas se vão
Retornando, contorcendo-se através das vielas sombrias da morte
Que era a vida mesmo, afinal? Era tudo, e tanto mais...
E quase nada... Era nada.

Que é a vida diante dum dedo magoado na quina da porta?
Diante dum acorde mal colocado, os dedos a tremer...
Que é essa correria contorcida, luzes de postes queimadas
Sambas herméticos e olhares mal encarados
Tudo que quero da chuva é o tamborilar,
Haverei eu de chover também?

Participo e brinco, e observo, amando
E amo a vida como o coveiro ama sua pá
E repugno a própria ideia da existência
Como um câncer espalhando-se através dum mar indefinível
Anos-luz de anos-luz de anos-luz de infinidade
E amo este câncer mais todos os dias
Chicoteia-me, o amor, rasgando-me as costas
Com duros pregos de ferro

Delicia-me, o cheiro dos funchos
Repugna-me, o cheiro dos cadáveres animalescos
E são ambos o mesmo cheiro!
Amo-os, e são a própria morte
O amor está no morrer dolorido, mas amando

Virem-me os olhos, que me perscrutam
Cabeleiras esvoaçando-se frente ao vento febril dos ventiladores
Conversas tolas, quase dogmáticas verdades divinas
Pedaços de chão fantasiando-se com decência
Areia quente, que suga o sangue dos inocentes
Um medo indizível da eternidade, um medo indizível do fim
Um medo quase catastrófico do amor

Ah, que é este veneno que me toma o corpo?!
Ameaça-me com mãos macias como seda
Promete-me tudo, num sussurro indolor
Hálito de grama recém-cortada, dedos da aurora
Santos e demônios jamais ouviram falar...

Observo, noto o amor e me escondo
Enquanto derreto, como um cubo de gelo sob o sol
Entrego as mãos de olhos fechados, e que me conduza
Através da estranheza áspera dos becos escuros
Das vielas arborizadas e das periferias macabras
Me toma o coração como a lua cheia toma o mar

Quando crescer, quero ser poeta,
Quem sabe assim não consigo descrever tudo isso...

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Urgentes na Noite



Insólito jogo de meandrosas palavras
Quando já não caibo mais em mim
Afortunado é o fruto que logo se desprende
Mas tanto sofre o que se deixou ficar
Preso à rama – até que venha o verão

Despretensiosamente, eu desfraldo e iço a vela
Como um marinheiro perdido num conto empoeirado
Não sei se de fato ouço, ou se apenas imaginam os poetas
Cantos de povos entoados e trombones
Sereias, tambores e búzios celestiais
E eu pinto com olhos curiosos a imagem...

Eu vi e quis viver, até em pouco me perdi
E meu lar não está nunca à vista,
Para qualquer lado que se olhe
Mas me enganaram sempre, estes dois olhos meio-cegos
Talvez eu nunca tenha estado aqui
Talvez seja tudo nada mais que sonhos
Dum napeiro homem triste

Não sei se penso; nem se existo
Os trocadilhos já me cansam
Como quando criança me cansava a noite
E, nos braços da minha mãe, cruzava a cidade
Desemborcávamos, urgentes, no lugar branco
E o cheiro era de éter. 

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Céus Cinzentos, Esperanças Meio Azuis


Azul, azul, azul
Como era o do céu
Que o nevoeiro roubou
Que cinza aquela tarde!

Ouço num canto qualquer que é um milagre,
A própria existência
E que admirável é que não nos dissolvamos
Durante o banho

Tu estás acordado?
Teus olhos vagueiam como num sonho
Em que és errante, perdido dos teus pais
Numa vasta praça de mercado

O toque divino num mundo ateu
[Um ateu nas terras de Judá]
Um sonho esquecido e cambiado
Por uma fácil e palpável ilusão

Nem correr podes,
Que a chuva não deixa

Há barragem entre a alma e os olhos
Que a visão de ti quase rompeu
As águas doces da chuva
Misturando-se ao sal da lágrimas
[E o sal das lágrimas já nada há de fazer]

Sol, retornas, sol
E faz brilhar de novo esse azul
Que sem tua luz-guia
Nós nos perdemos mais do que nos é comum. 

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Matiz Sussurrado


Falávamos sobre a vida
E sobre as coisas que nos mantinham

Sobre os espaços vazios 
Entre tantos uns e outros

Falávamos sobre continuar 
Sobre deixas e possibilidades
Sobre saldos antigos e motivos

Nem mesmo da tarde de sexta-feira
Ou das magistrais progressões musicais
Que a atmosfera estremecem e apavoram

No meio de tanta coisa
Há ainda tanta coisa 
Deliciosa e ocultada

Almejam-se só os olhos de ver...