sábado, 1 de março de 2014

Sonhos de um homem que não conseguiu desistir


Quando [e se] puder eu regressar 
Ao tempo e ao lugar 
De que falam essas imagens turvas 
Que mudança que farei - que faria?
Quais meios submissivos para livrar-me 
- Numa só sorte de golpes -
Dessa constante saudade 
Do que nunca pôde ser? 

Passo a passo - num grande passeio escuro, 
Num caminho de cimento sulcado, 
Que remete aos abrolhosos telhados, 
E me forçam à caminhada pouco certa 
Sobre a abóboda fatal da incerteza; 
Num ímpeto de liberdade, 
Eis que corda dou ao grande piano, 
Apenas para mal sobreviver à desaprovação
Daquele homem alto, do parapeito, 
Do qual o rosto não se vê,
Que tudo o que aprova é o silêncio.

E, do meu lado, ela caminha, 
Como caminhou por tantos outros dias,
E é exatamente aquele mesma; 
Unicamente a que sempre foi, 
Com os olhos, talvez, meio tristes, 
Mas um sorriso e uma ânsia pelo desafio 
- O desafio ora presente, que 
O tédio dos anos fez questão de enterrar.

No chão, meus pés sangram,
Quando com cautela me distancio, 
Aos poucos, do vidro que estilhaçou-se 
Pelo poder febril de uma antiga canção, 
A que ousei reproduzir sem fervor 
- Numa época que não é para canções, 
Mas apenas para vidro estilhaçado sob a sola dos pés, 
Para sangue e questões natimortas 
Acerca das dores que hão de doer
E dos poucos caminhos que há para se seguir. 

Há caminhos que nunca foram para mim, 
Que falam de conversas tolas, inclinadas 
Sobre balaustradas tão fantasiosas,
E sobre as mesmas conversas tolas 
Em belos campos noturnos, pouco frios, 
Em que belos pássaros brancos, como fantasmas, 
Voam por sobre os belos gramados em verde-escuro,
E eu levanto a mão, em aceno 
a todos aos quais nunca dirigi palavra 
E é um contido sorriso frio que há em retorno.

Eu queria, posso agora ver, 
Haver sido dessas conversas tolas, inclinadas 
Por sobre balaustradas fantasiosas,
Sobre a sorte das coisas mais tolas, 
Como quem deseja, a despeito da certeza - 
Desvencilhar-se da verdade 
[Que tanto pesar acompanha, 
E tanta solidão acrescenta] 
Ao mundo, que já é tão pequeno;
Ao universo, que já me deixou para trás
E me legou nada mais que abandono.

E, do meu lado, ela caminha, 
Como caminhou por tantos outros dias
E negam-se-lhe a entrada às salas de cinema 
Por ser, ela, tão pequena, 
E eu desejo tomar alguma satisfação - 
Porque, se bem me lembro 
Fora ela a livrar-me dos estilhaços de vidro, 
Que me fizeram sangrar a sola dos pés. 

Eu desejo, então, conhecer
a todos os cheios de poder, 

Aqueles meio-amigos aos quais um telefonema basta,
E o mundo cai, grelhado, sobre uma bandeja de ouro;
Cai sobre a fundação pouco segura 
Esculpida paulatinamente no concreto 
do meu coração endurecido, 
E o sal das lágrimas já não o pode corroer - 
O sal das lágrimas já nada há de fazer. 

Quando, na noite que tanto queria ser festiva
Tudo o que há é o silêncio azedo, seco 
E o barulho molhado de chuveiros que fazem pressão 
Contra o plano branco do banheiro - tão bem iluminado 
Que cada pequena irregularidade 
Salta aos olhos com acenos angustiantes
Vejo não tratar-se do melhor lugar 
Para lembrar-se do sangue vermelho, vivo 
E do vidro selvagem sob a sola dos pés 
E dela, caminhando do meu lado 
Como sempre houvera caminhando. 

O cheiro do alvejante e uma conversa entrecortada 
Para lá da porta, tão altiva, de madeira 
Trazem à tona a água em meu relógio 
Águas que talvez fossem salgadas 
De sal que já não corrói 
A dureza de qualquer coração 
que pudesse haver, lá dentro, na escuridão.

E as garotas estão todas com os olhos 
Ferventes, sobre as telas brancas 
E facilmente se entristecem com as pequenas conversas - 
paralelas - sobre qualquer verdade 
Que possa haver neste mundo, tão pequeno
Sobre qualquer palavra que possa matar 
Toda essa falta de sede de viver.

E, aquele que aparenta tanta força 
Justamente por aparentar tanta fraqueza 
Debruça-se por sobre as balaustradas fantasiosas 
E talvez não espere por nada que não 
As conversas tolas sobre as inverdades 
E talvez, o cigarro que acende, 
Seja para iluminar qualquer vazio escuro 
De um coração que se supunha 
Que deveria existir, no interior 
Daquele peito quase sem vida. 

Meu piano foi sempre menor 
Que aquele que jaz no caminho abobadado 
De cimento quase sempre sulcado 
E ainda me admira o fato 
De que se mantenha firme, em detrimento 
Daquelas casas sem qualquer estrutura
[Talvez sejam as crianças que olham, 
Através das janelas, e o mantêm pairando 
No ar frio e escuro de um mês de Dezembro 
Que nunca ousará ir embora. 

E, do meu lado, ela caminha 
Como nunca mais ousou caminhar 
Como nunca mais ousou comentar 
Acerca das xícaras meio-amargas de chocolate 
E daquelas canções das quais, hoje, 
Pouco tiro proveito - 
Quando o tempo que deveria seguir 
Converte-se nas mortais batidas de tambor 
Que unem-se ao tique-taque 
- pouco quisto - de um relógio invisível. 

No relógio invisível, 
Quase parado, pela água salgada [das lágrimas
Uma mosca já o fez de morada 
Os números e as marcações somem, aos poucos 
E esta pequena besta, amante da carne [apodrecida
Incita-se contra o muro de vidro 
O que não me cortará os pés ou me fará sangrar
A única barreira que me mantém, então, 
Distante do anjo que nos beija, afinal.

E eu corro de bar em bar, de viela em viela, 
Deliciando-me com os cheiros das cervejas 
E das carnes pouco-passadas 
E dos perfumes infantis, dos perfumes femininos 
Dos perfumes tristes dos homens solitários 
Meus dedos dos pés ansiando pela areia fina 
E pelos dias imortais de sol -
Os dias imortais de sol - o refúgio contra a mosca 
Dias de areia sob as solas dos pés - nada de vidro; nada de sangue. 

E eu corro de avenida em avenida 
Sob os olhares de rostos e mais rostos 
E procuro por público - ao qual remeter a ideia 
Sobre a qual falo - ou ao menos tento falar 
E posso talvez convidá-los às balaustradas fantasiosas 
Para discorrer sobre assuntos tolos 
Podendo ver, no centro dos olhos iluminados, 
Um quê de compreensão pelas verdades
Mesmo que falemos das mais vis tolices! 

O ponto de partida 
Será sempre o ponto de chegada 
Quando das correrias infames 
E das canções violentas de sangue 
E das canções macias de amor 
E dos amores tão pouco vividos 
E da sensação de pequenez do mundo 
- Quando disto tudo, o que restar for o esquecimento 
O silêncio virá acompanhado da uma felicidade 
Pouco comum - deveras particular. 

Você está de volta à mesma cama quente 
E tudo o que aprendeu foi que o esquecimento 
É a palavra que mais se assemelha 
à incompreendida felicidade
E tudo o que há de se fazer 
Para que se atinja qualquer lado do caminho, agora 
É simplesmente deixar que o já rarefeito ar 
Penetre nos pulmões cada vez menos.

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