quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

[Análise - Livro] Demian



                Demian é uma estória sobre o Eu
Anti-maniqueísta, anti-conservador e em oposição a protótipos, Hermann Hesse nos apresenta a estória de Emil Sinclair, um menino europeu de classe média, do início do século XX, pré Primeira Guerra Mundial. O relato é do próprio narrador-personagem, que enceta a obra nos contando acerca da sua mais velha infância, em que tudo era brincadeira, harmonia e pureza do lar. 
                A primeira imagem que Sinclair nos forma à consciência é sua convicção prematura da existência de dois mundos; em um deles, estavam seus pais, suas irmãs, seu lar - um mundo correto, cheio de luz, cheio de sinceridades e dignidade, um mundo assenhorado por Deus e pela moral; no outro, estavam todas as coisas escuras da sua existência de menino: os relatos dos roubos, dos assassinatos, dos estupros, da má fé, da crueldade. Nas fazes menos tardias da faixa de tempo que o relato cobre, Sinclair começa por interessar-se, mesmo que inconscientemente, pelos mistérios que encobriam aquele mundo escuro, de que tão pouco sabia. Sinclair, a pequenos e tímidos passos, irrompe na porta sutil que leva àquelas intermináveis sombras, sempre que se lhe é dada a oportunidade; mas sabe ele que bastava voltar correndo para a porta de casa e seria acolhido novamente por toda aquela avalanche de pureza e bons ventos, pelo colo de sua mãe e pela totalidade daquele mundo pueril e limpo.   
                Seu primeiro grande acesso a esse outro lado se dá através de um conhecido de dois conhecidos seus, Fraz Kromer, um tipo muito pobre e sujo, a representação perfeita daquele outro lado que tanto despertava a curiosidade de Sinclair. Um dia, dirigem-se eles – Sinclair, Kromer e os outros dois – a um passeio vagabundo através da cidade, o que os leva a um local onde se despeja lixo. É aí em que, para que não fosse visto como garoto mimado e riquinho, Sinclair conta-os acerca de um roubo de maçãs, que teria cometido com outros amigos, em um pomar das redondezas; o roubo nunca existira de fato. Sinclair é seguido por Kromer até à casa, em que Kromer entra sem ser convidado, dizendo que o denunciará e, com isso, ganhará dois marcos de recompensa, por ter pego o ladrão. Sinclair sente-se, pela primeira vez, na iminência do abandono daquele lado carinhoso e cheio de luz; sente-se como se houvesse misturado duas coisas que não se pertenciam uma a outra. Kromer havia entrado em sua casa, o ponto em que todas as coisas boas do mundo branco se encerravam, e isso, funcionando como simbologia, apresenta a primeira miscelânea daqueles dois mundos que Sinclair tanto queria que permanecessem separados. Sinclair tenta convencê-lo de diversas formas a não caguetá-lo, oferecendo-lhe um velho relógio de prata de seu avô, que trazia ao pulso. Em vão, Kromer diz que ele terá que conseguir o mesmo dinheiro da recompensa, os dois marcos, se não quiser ser denunciado. 
                Inicia-se, então, o primeiro inferno de Sinclair, perdido como se houvesse esquecido o caminho que o levaria de volta ao mundo branco. Não tinha coragem de revelar a situação aos pais, porque toda a pureza do seu gracioso lar estaria corrompida, visto que ele, ora, seria visto como um mentiroso (Sinclair havia jurado por Deus e pela salvação de sua alma que o que contava, acerca do roubo, era um fato), e mentira era coisa que não cabia naquele mundo. Ele torturou-se e passou a fazer a vontade de Kromer, roubando-lhe comidas e dinheiros, para que ele pudesse, um dia, ser perdoado por aquela dívida. A sensação de estar em dívida com alguém foi como que o inferno para a personagem, que carrega o receio da dívida por grande parte do restante das páginas da estória. Sinclair sente que não mais pertence àquela pureza, àqueles amores, àqueles domingos, àquelas canções natalinas.
                É aqui que primeiro conhecemos Demian, um enigmático rapaz que passa a interessar-se por Sinclair. A primeira conversa que têm versa sobre a estória de Caim e Abel, a que fora passada a eles através das lições da escola. Max Demian questiona a moral daquele conto, fazendo com que Sinclair passe a questioná-lo também. É aqui que nos deparamos com a primeira quebra de paradigmas encetada pelo protagonista, que agora perde horas questionando a natureza, e até mesmo a veracidade, daquelas histórias seculares, impostas como dogma. Demian diz que a “marca” que Caim levava no rosto era nada mais que seu olhar, olhar de homem determinado, forte, implacável. Faz ainda Sinclair perguntar-se se o que teria acontecido não teria sido mais como uma história em que o forte (Caim) teria subjugado o fraco (Abel) [negligenciando o fato de terem sido eles irmãos ou não], e todo o restante do rebanho dos fracos haveriam se unido para escrever uma história que demonizasse todos os fortes para a eternidade. Após a conversa, Sinclair passa a sonhar com Demian frequentemente. Afirma que, em alguns sonhos, Kromer o obrigava a fazer atrocidades e, em outros, ele o prendia contra o chão, com os joelhos sobre seu peito. Em um desses sonhos, Sinclair percebe que não é Kromer quem o tem detido sob os joelhos, mas Demian, e então ele sente como se aquilo não fosse doloroso. É então que percebemos que o interesse que Sinclair desenvolve pelo mundo escuro não se dá pela parte do mundo habitada por aqueles como Kromer, mas pela parte habitada por aqueles como Demian.   
                Max Demian é um rapaz com rosto de menino e de homem ao mesmo tempo, de fronte farta e olhos sábios. É ele quem, de alguma maneira, liberta Sinclair do tormento de servidão a Kromer, que agora tudo o que faz é evitá-lo, com medo do quer que Demian tenha lhe dito/feito. Antes de libertá-lo do tormento, Demian o diz que um homem apenas teme quando deve, e que deve ele enfrentar o medo até o fim. Quando Sinclair está livre, decide contar para os pais o que se passou naqueles últimos tempos, para que retornasse pelo menos a ilusão do primeiro mundo, e ele coloca-se na estória do filho pródigo, que retorna, após o tormento, para a casa paterna. É então que Sinclair percebe que aquele mundo escuro agora era parte de si. Todos aqueles pensamentos, aquelas questões, apoderavam-se agora de si, querendo ele ou não. Demian havia plantado a primeira semente da inglória jornada de Sinclair. Mesmo querendo voltar a pertencer ao mundo branco, Sinclair encontra parte de si querendo partir para desvendar o mistério daquele outro mundo amoral, insensível, cruel. 
                Sua relação com Max Demian não se intensifica em demasia, mas, ainda assim, eles mantém certo vínculo, como quando Demian, aos poucos, aproxima-se dele, na sala de aula, terminando por sentar-se ao seu lado. Em uma ocasião em particular, Sinclair abruptamente sente como se não houvesse qualquer existência humana naquele que está a sentar-se do seu lado. Quando se vira para o amigo, percebe que Demian encontra-se num estado de paralisia que o havia removido completamente da existência terrena; logo depois, Demian retorna a si, trazendo de volta a presença que Sinclair pouco sentira, naqueles instantes. Até uma mosca passeara por sua boca sem que Demian lhe prestasse atenção, naqueles instantes de transe, no meio de uma aula da escola. Em uma ocasião, Sinclair avista à figura de Demian a tentar pintar um escudo desgastado entalhado numa pedra que há de fronte à sua casa, o qual já havia sido alvo de uma conversa que haviam tido, logo após a discussão sobre a verdadeira natureza da história de Caim. Numa outra, os garotos da escola observavam um cavalo que havia perdido a força e caído no centro da rua. Sinclair observa a mesma natureza do rosto do amigo - jovem e maduro ao mesmo tempo, mas então consegue atribui-lo mais qualidades agora perceptíveis: Demian encerra, para Sinclair, em seu semblante, o masculino e o feminino, o novo e o antigo, algo novo e milenar, a besta e a divindade; uma criatura-enigma que vivia, de alguma forma, fora da rota daquele planeta, que manipulava as pessoas de alguma forma, intimidava outras com simples palavras - que lia pensamentos e tinha respostas para todas as coisas.  
                Nas conversas subsequentes entre Max e Emil, Max Demian prima sempre pelos assuntos que façam Sinclair, de alguma forma, questionar a moral daquele mundo em que vivem. Numa das conversações, acerca da vontade, Demian diz que o que ele faz verdadeiramente não é ler pensamentos, mas observar cada parcela dos comportamentos daqueles de sua convivência; diz ele que, dessa forma, torna-se tarefa simples antecipar seus movimentos e reduzi-los a nada mais criaturas previsíveis. Demian diz, também, que a vontade humana não é livre, abrindo portas para a discussão espiritual/destino, que a partir daqui se torna constante. Diz ele, em contrapartida, que a vontade endereçada é uma arma poderosa, o que faz Sinclair questioná-lo: se a vontade não é livre, como endereçá-la? Demian responde que o fato dela não ser livre não significa que o homem não tenha qualquer controle sobre ela, mas que ele não pode mudá-la, porque a alguns homens sempre interessará um tipo de coisas, e a outro, outro tipo muito distinto; de certa forma, que as vontades estão ligadas ao mais íntimo ser e que tentar mudá-la configura intento para tolos. Diz, por fim, que aquela vontade, se cumprida como se apresenta no berço do íntimo ser - sua não-realização torna-se impraticável. 
                Nos discursos de Demian, o fraco, o covarde e o ajoelhador são sempre desprezíveis e escória da raça humana; diz que são eles os autores das falsas divindades puramente benignas, iluminadas, paternais. Demian diz ainda que toda a parte obscura do mundo não deve ser atribuída ao Diabo, porque são elas também criação daquele mesmo Deus que todas as coisas da existência criou, tornando-o, assim como suas crias, o bem e o mal, o resumo de todas as coisas manifestadas, Jeová e Satanás numa única figura: a quebra do maniqueísmo e o ponto final na doutrina dos fracos.
                Em seguida, Max recomenda que Emil viva dos seus impulsos e das suas fantasias mais inerentes, que viva das suas ideias íntimas e do que puder extrair dos seus pensamentos e sonhos. Diz ele que a única moral existente deve ser a sua própria, e que não se deve dar ouvidos ao que se lho é imposto. Continua dizendo que o homem vulgar acredita estar fazendo o bem simplesmente porque está confortável em relação às regras que se apresentam a si externamente, mas que, por não realizar aquilo que brota do seu íntimo, entra em rota de colisão consigo mesmo, desvia-se do seu próprio caminho em direção a si. 
                Diz Demian, ainda, que nem todo se bípede é homem; que muitos não vivem, mas apenas vagam.
                Durante sua puberdade, Sinclair sente-se como se desse adeus definitivo àquele mundo branco, que agora já não existia, porque Demian o havia mostrado que não havia razão para separar o branco do preto, quando tinham ambos o mesmo pai, e aos poucos afasta-se da pureza da casa paterna, dos braços da mãe, de tudo que um dia já lhe havia sido tão delicioso. É então que Sinclair vê-se encurralado pelos sonhos sensuais de natureza primitiva, pelo nascimento de um outro, estranho e até deprimido. É nessa época que Sinclair se muda, para dar início aos estudos do colégio. Torna-se, então, um adolescente boêmio, vendo pouco significado nas coisas, prestando pouca atenção nos estudos e muita atenção no vinho. 
                É nessa parcela que se intensifica a busca de Emil Sinclair por aquilo que havia em seu interior. É então que vê a imagem do que se tornaria sua musa inspiradora, uma garota de cabelos claros que ia passando por ali, com a qual nunca tivera (ou teve posteriormente) contato. Ele a atribui o nome Beatrice e passa a tentar desenhá-la no seu quarto de estudante. Quando consegue um desenho que, afinal, o agrada, percebe que este se parece em demasia com algo que já conhecia. E então vê: Beatrice encerrava no seu rosto traços de Demian. Não era somente a imagem isolada da menina da rua ou de Demian, mas a imagem de todas as coisas que possuíam relação consigo: seus desejos, seus sonhos, seus objetivos – era a imagem do seu espírito, do seu destino, de todas as coisas que sua vontade era capaz de cobrir. Era essa imagem que agora tomava o lugar de sua mãe, nos seus sonhos. Não era mais o colo de sua mãe que o esperava num iminente regresso a casa, mas o colo de Beatrice, aquela criatura mulher-homem, deus-besta, imaculada-prostituta.
                Mais à frente, Sinclair envia a Demian um desenho de algo que o havia invadido os sonhos: é a imagem de um pássaro, porventura, um falcão, que tenta retirar-se da casa dum ovo. Demian o responde posteriormente com as palavras: “A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo. A ave voa para Deus. E o deus se chama Abraxas.” Abraxas era uma antiga criatura de mitologias esquecidas no tempo, o que logo Sinclair veio a descobrir, aquilo a que Demian já havia aludido algum tempo atrás, a sintetização de bem e mal, Deus e Diabo, numa só criatura, a única existente, mãe de todas as coisas.
                Com essas palavras aparentemente confusas, Sinclair ainda não vê pistas de como exteriorizar de vez esse seu ser interior, de como direcionar sua vontade de uma vez por todas ao seu destino e de como se desfazer, por fim, de todo o restante das coisas. Encontra, então, Pistórius, um fenomenal tocador de órgão, que passa a apreciar, indo vê-lo tocar quase todos os dias. Eles tornam-se amigos e encetam a prática de uma espécie de meditação em que se contempla o fogo; o fazem nos aposentos de Pistórius, onde perdem horas em horas em silêncio, em busca de alguma resposta interior. Pistórius o diz que cada homem e cada mulher existe independentemente de todas as outras coisas, que o que existe fora da concepção do homem, não existe de todo, e que o objetivo de cada um de nós é nos encontrarmos com nosso próprio destino, com nosso espírito, com nosso eu interior. É ele simpatizante da doutrina que prega a existência do deus-único Abraxas. Diz que é antigo aspirante a pároco, que sente-se bem próximo a pessoas ligadas à religião, mas que sua crença é deveras diferente das deles, e que não havia, portanto, sentido em tentar convertê-los. Diz também que, de qualquer forma, terá de regressar à igreja, para tornar-se organista oficial. Sua forma de pensar é semelhante à de Demian, de acordo com a qual deve-se apenas viver aquilo que brota do interior, dos desejos e dos sonhos, não se dando qualquer importância a influências morais, que nada fazem senão uniformizar e transformar cada individual num grande rebanho homogêneo. Diz ele que há duas espécies de homens: os que caminham em direção a si próprios, ao seu destino, aos seus sonhos individuais; e os que caminham em direção ao rebanho (e com o rebanho), em busca de qualquer melhoria para a raça humana, e que não sabe diferenciar ideais coletivos de ideais particulares. Sinclair rompe parcela de sua relação com Pistórius quando, sem a intenção de magoá-lo, ele diz-lhe, de certa forma, que é inútil perder tempo com sistematizações e escritos de religiões antigas e obsoletas, o que era prática constante do amigo. 
                Adiante, Sinclair por fim encontra a personagem que encerrava em sonhos, aquela mulher máscula que tinha os traços de Demian, que o esperava nos sonhos, no lugar da mãe. Descobre então que a mulher é a mãe de Demian, e que chegou o momento de regressar ao seu colo. Ela lhe revela seu nome, Eva, e diz que poucos são os dignos de tal revelação. Demian diz que ela o conhecia porque ele a havia dito que Sinclair carregava a marca de Caim nos olhos, desde o tempo em que o conhecera. Demian passa a participar da religião daquela mulher, que tem o rosto de todas as coisas, os braços maternos da divindade e o tom paterno da animalidade. E aos encontros daquela religião vão astrônomos, céticos, e toda sorte de pessoas, daqueles que haviam aberto os olhos e constatado a verdade de Abraxas, a síntese do bem e do mal. E era só questão de Emil focar o pensamento nela para que ela viesse ao seu encontro. Sinclair sente grande ardor por ela, e passa a desejá-la. Ela diz que apenas integrar-se-ia a ele quando ele a desejasse por completo, sem receios. Eva era sua mãe e sua amante, o corpo eterno e estrelado dos céus e o dourado do brilho do sol.
                Numa tarde como qualquer, Sinclair direciona todos os seus pensamentos a Eva, e então lhe aparece Demian, que é mandado no lugar da mãe. O menino-homem tem uma expressão trágica no rosto. Diz que havia se alistado para o exército, e que cedo Sinclair seria convocado também. As relações do país com a Rússia haviam vacilado. Era o início da Primeira Grande Guerra. 
                As últimas observações de Sinclair são direcionadas àqueles homens que na guerra lutavam, obstinados e maduros, embriagados pela imagem do destino e excluindo qualquer possibilidade de conforto. Ainda que o mundo permanecesse imaturo, confinado num modelo estranho à ponderação e à harmonia, aqueles homens se apresentavam ali para cumprirem seu destino, e é justamente no cumprimento de cada destino individual que a humanidade finalmente parece encaminhar-se para um termo. 
                Numa das batalhas, Sinclair vê num relance uma cidade nos céus, em que vivem milhares de seres como estrelas, da qual uma deusa com o rosto de Eva é a principal divindade, de sua fronte jorram estrelas que regressam aos céus, em belos movimentos curvos. 
                Com um ferimento de batalha, Sinclair desperta, e tem o amigo Demian ao seu lado, próximo à morte. Demian o diz que terá que partir, que quando Sinclair dele necessitasse ele não mais se dirigiria a ele a trem ou a cavalo, mas que estaria dentro dele próprio. Demian finaliza suas palavras pedindo para que Sinclair receba o beijo que Eva havia mandado através dele. Sinclair termina, então, seu relato, dizendo que tudo o que veio em seguida o causou dor, porque sua existência terrena ainda acontecia, e ele estava separado do seu guia e de sua amante-mãe, mas diz também que se refugia sempre naquele eu interior, que finalmente havia encontrado, aquele ser que sintetizava a imagem de todas as coisas relativas à sua vontade: seu espírito e seu destino.                           

Nenhum comentário:

Postar um comentário