Estamos todos saturados, cheios - não aguentamos mais sequer ouvir falar - de histórias de ficção que envolvem apocalipses zumbis, e linhas de enredo similares. Esta espécie do gênero horror, por mais atual que pareça ser, vem sendo explorada – digamos estuprada – por uma variadíssima gama de diretores de cinema no decorrer das 4 últimas décadas; não apenas por diretores de cinema, mas também por aqueles do lado da ficção, na literatura. Tanto já faz parte da psique contemporânea, este tipo de estórias, que já sabemos de cór a procedência daqueles que conseguem sobreviver em meio ao modelo de drama que se apossa do mundo, do qual poucos são capazes de escapar; veem aqueles que um dia foram seus conhecidos a transformar-se em criaturas animalescas, com apetites voltados à carne e ao sangue. Outro grande problema enfrentado por quem protagoniza essas dolorosas jornadas é o fato de que o mundo deixa de funcionar, após certo período de tempo, principalmente porque há aqueles com medo de ser infectados ou com medo de ser comidos pelas criaturas que agora parecem dominar o mundo, e não há maneira de raciocinar saídas, para que os danos não sejam tão intensos. Entre esses que se infectam ou têm medo demais de infectar-se, estão aqueles que controlam as válvulas de encanamento, os que controlam as aparelhagens responsáveis pelo fornecimento de energia elétrica, os que controlam a distribuição de comida pelos centros de compras... O trânsito é acometido pelo caos, simplesmente para morrer por completo, pouco depois. Os sobreviventes agora lutam para manter-se vivos, num mundo inimaginavalmente diferente daquele que um dia conheceram.
Mas,
José Saramago, o português vencedor de um Prêmio Nobel, nos oferece uma
situação milhares de vezes mais dolorosa que essas que nos foram oferecidas
pelos aclamados contos apocalípticos de zumbis, porque não há zumbis. A grande
diferença para “Ensaio Sobre a Cegueira” reside no fato de que os humanos, no
conto de Saramago, continuam a ser humanos, com a simples diferença de que: não
veem. Os olhos dos “infectados” não mais veem, porque um manto de luz os aparta
de toda a realidade visível; não se trata daquela escuridão características que,
naturalmente, os cegos ordinários enxergam – não, em vez de escuridão, o que
veem é um grande e interminável mar de luz. O primeiro homem a cegar está em
seu carro, no trânsito corrente, quando percebe que já não mais é capaz de ver.
É apenas questão de tempo, até que dezenas, centenas, milhares de pessoas
estejam infectadas pela cegueira instantânea, que não faz diferenciações. O
governo do local em questão decide, devido à alta capacidade de dissipação
daquele suposto vírus, tomar medidas, literalmente, drásticas. Decidem-se por
trancafiar os primeiros atingidos num antigo hospício, enquanto não houver solução
iminente.
O
último ser humano de que temos notícia de que tenha conservado a visão é a
mulher de um dos homens confinados, um médico, que finge a cegueira para poder
acompanhá-lo naquele afastamento definitivo da comum civilização. E ela passa a
ser nossos olhos, no decorrer do conto, porque história de cegos descrita por
mais um cego não se parece com um empreendimento muito promissor.
José
Saramago, na sua maneira peculiar de desenvolver diálogos, não se utiliza de
sequer um ponto de interrogação, ou ponto de exclamação, ou travessões para
enunciar diálogos – nada. Tudo são vírgulas, pontos e parágrafos, o que não
quer dizer que a leitura vá se tornar incômoda ou enfadonha, pelo contrário, em
minha opinião, os diálogos tornam-se mais “fluidos” com seu estilo com o qual
os apresenta.
Por
tratar-se mais de uma alegoria que de uma estória fictícia (ainda que a maioria
das alegorias tenham uma estória fantasiosa como plano de fundo), é-nos negado
os nomes de todas as personagens presentes no conto. Sabemos quem eram, suas
profissões, alguma característica que carregavam, quando todos podiam ver, mas
nunca seus nomes. Quando questionados acerca de seus nomes, não é raro que um
cego ou outro retorca com um simples “não importa quem sou, agora sou só mais
um cego”. A última mulher a ser capaz de ver é ninguém mais que simplesmente “a
mulher do médico”. O médico é o oftamologista que examinou aquele que foi o
suposto primeiro homem a cegar, quando dirigia seu automóvel no trânsito. Ele
também examinou mais das personagens do arco principal: o garotinho estrábico,
que, logo no início do confinamento, quer mais nada que não a mãe, a rapariga
de óculos escuros (todo o português original, com que a obra foi escrita,
permaneceu inalterado), o senhor com um tapa-olho.
Estão
todos agora confinados ao hospício, todos divididos entre as camaratas. Todos
os dias irrompem mais e mais cegos, perdidos, tendo se despido de toda a
dignidade, para encontrar um mundo ainda mais indigno: digno de ser chamado
inferno. As comidas inicialmente vêm periódicamente, mas logo começa a
tornar-se insuficiente para que se alimentem tantas bocas famintas. Os soldados
da portaria estão afastados demais para simplesmente permitirem que qualquer um
dos cegos se aproxime, seja para reclamar da pouca comida, seja para requisitar
um analgésico, para que o coitado que levava uma ferida gangrenada na perna não
sucumbisse e morresse na dor.
Quando
do advento do homem que possui uma arma, que está na companhia dum cego “de
verdade”, dos que não enxergam desde que nasceram, o que faz dele um semi-rei,
todos se vêem na iminência do advento de um novo regime no hospício, e é o que
ocorre. O homem malvado, que tem a arma, requisita toda sorte de pertences
valiosos, para só então permitir que alguma da comida prossiga para as
camaratas. Ora, as comidas ainda assim se lhes vão em pequenas quantidades, e,
se ainda almejam por sobrevivência, devem eles obedecer aos novos tiranos e
racionar toda a comida. E esses pertences se vão como pagamento pela comida que
é sua por direito.
A
situação apenas piora. As mulheres são estupradas “por sua vontade”, porque se
não fossem voluntárias, não haveria mais comida para elas, para o pequeno
menino estrábico, para os velhos, para ninguém. Todos sucumbem num mar de
secreções, dejetos, excrementos, que só quem é capaz de ver é capaz de evitar,
pelo menos quando não se tem alguém que enxergue bem próximo; ainda assim,
quase nada, a que ainda vê, é capaz de fazer, porque eles são muitos, e ela é
só uma.
Somos
afrontados pela imagem de uma moral humana, tão repulsiva quanto real, de cegos
aproveitando-se da cegueira dos outros, tanto para demarcar poder, quanto para
garantir a refeição da noite. Quando se trata de manter o corpo vivo, de tudo
somos capazes de fazer – isto é parte do que Saramago quer nos dizer; poucas
barreiras há entre o homem despido de dignidade e o homem selvagem, primando
por sua própria sobrevivência. Outra coisa que o autor quer nos dizer é que só
sobrevivem (a morte de que falo, em detrimento dessa sobrevivência, não é
somente a morte física, mas a morte da alma, para que se dê lugar ao animal
faminto e descontrolado), afinal, aqueles que continuam unidos, como um só
corpo em meio ao desastre do inferno que vai, ao poucos se formando. Este corpo
único de vários que se forma é o corpo do arco central: a mulher que ainda vê,
o médico, a rapariga dos óculos escuros, o menino estrábico, o velho com o
tapa-olho, o primeiro cego e sua mulher. E uma relação de amor se impregna em
cada um deles e em todos, uns pelos outros: mas não o amor banal e profano dos
que não conhecem toda a bruteza da vida, mas o amor que serve de amurada, para
que nenhum deles caia no abismo eterno de estar cego, num mundo tão vasto.
Depois
descobrem eles estar livres para regressar ao mundo que um dia os acolhera: mas
veem eles que liberdade é nada mais que uma palavra fora de contexto, quando
tudo o que encontram é um mundo abandonado, porque já quase ninguém na
superfície da terra é capaz de ver. Tudo o que veem é a luz eterna que os
impedem de ver qualquer coisa. Os cegos movem-se por agrupamentos ou sozinhos:
os que movem-se sozinhos estão vivos apenas para contrariar o alerta comum, que
parece pairar no ar, que diz que não pode haver vida a um. Estão todos a
procurar por qualquer comida que tenha restado, por qualquer lugar em que
possam passar mais uma noite.
Os
santos da igreja que a mulher que ainda vê visita com o marido estão todos vendados,
porque estiveram sempre vendados, e foi alma que se relaciona bem com a verdade
que foi capaz de cometer o ato de vendá-los. Porque eles sempre estiveram
cegos, e nós estamos por nós mesmos neste mundo. E não apenas os santos estão
cegos para nós, como nós estamos cegos para nós mesmos, e para todo o restante
das coisas. Estamos cegos, porque passamos a vida a viver como se fôssemos
muito mais do que apenas corpos vagantes, tão necessitados de comida, quanto de
água, quanto de proximidade daqueles outros que nos aquecem e nos defendem da
queda no grande abismo de estar cego, como todos estamos, num mundo, como
supracitado, tão vasto.
Para
não terminar por ofuscar o brilho incomparável da primeira leitura, encerro meu
relato por aqui, porque a obra é digna de ser vivida por quem por uma alegoria
sobre todo o gênero humano se interessar.
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