segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

[Análise - Livro] Ensaio Sobre a Cegueira


Estamos todos saturados, cheios - não aguentamos mais sequer ouvir falar - de histórias de ficção que envolvem apocalipses zumbis, e linhas de enredo similares. Esta espécie do gênero horror, por mais atual que pareça ser, vem sendo explorada – digamos estuprada – por uma variadíssima gama de diretores de cinema no decorrer das 4 últimas décadas; não apenas por diretores de cinema, mas também por aqueles do lado da ficção, na literatura. Tanto já faz parte da psique contemporânea, este tipo de estórias, que já sabemos de cór a procedência daqueles que conseguem sobreviver em meio ao modelo de drama que se apossa do mundo, do qual poucos são capazes de escapar; veem aqueles que um dia foram seus conhecidos a transformar-se em criaturas animalescas, com apetites voltados à carne e ao sangue. Outro grande problema enfrentado por quem protagoniza essas dolorosas jornadas é o fato de que o mundo deixa de funcionar, após certo período de tempo, principalmente porque há aqueles com medo de ser infectados ou com medo de ser comidos pelas criaturas que agora parecem dominar o mundo, e não há maneira de raciocinar saídas, para que os danos não sejam tão intensos. Entre esses que se infectam ou têm medo demais de infectar-se, estão aqueles que controlam as válvulas de encanamento, os que controlam as aparelhagens responsáveis pelo fornecimento de energia elétrica, os que controlam a distribuição de comida pelos centros de compras... O trânsito é acometido pelo caos, simplesmente para morrer por completo, pouco depois. Os sobreviventes agora lutam para manter-se vivos, num mundo inimaginavalmente diferente daquele que um dia conheceram. 
                Mas, José Saramago, o português vencedor de um Prêmio Nobel, nos oferece uma situação milhares de vezes mais dolorosa que essas que nos foram oferecidas pelos aclamados contos apocalípticos de zumbis, porque não há zumbis. A grande diferença para “Ensaio Sobre a Cegueira” reside no fato de que os humanos, no conto de Saramago, continuam a ser humanos, com a simples diferença de que: não veem. Os olhos dos “infectados” não mais veem, porque um manto de luz os aparta de toda a realidade visível; não se trata daquela escuridão características que, naturalmente, os cegos ordinários enxergam – não, em vez de escuridão, o que veem é um grande e interminável mar de luz. O primeiro homem a cegar está em seu carro, no trânsito corrente, quando percebe que já não mais é capaz de ver. É apenas questão de tempo, até que dezenas, centenas, milhares de pessoas estejam infectadas pela cegueira instantânea, que não faz diferenciações. O governo do local em questão decide, devido à alta capacidade de dissipação daquele suposto vírus, tomar medidas, literalmente, drásticas. Decidem-se por trancafiar os primeiros atingidos num antigo hospício, enquanto não houver solução iminente. 
                O último ser humano de que temos notícia de que tenha conservado a visão é a mulher de um dos homens confinados, um médico, que finge a cegueira para poder acompanhá-lo naquele afastamento definitivo da comum civilização. E ela passa a ser nossos olhos, no decorrer do conto, porque história de cegos descrita por mais um cego não se parece com um empreendimento muito promissor. 
                José Saramago, na sua maneira peculiar de desenvolver diálogos, não se utiliza de sequer um ponto de interrogação, ou ponto de exclamação, ou travessões para enunciar diálogos – nada. Tudo são vírgulas, pontos e parágrafos, o que não quer dizer que a leitura vá se tornar incômoda ou enfadonha, pelo contrário, em minha opinião, os diálogos tornam-se mais “fluidos” com seu estilo com o qual os apresenta. 
                Por tratar-se mais de uma alegoria que de uma estória fictícia (ainda que a maioria das alegorias tenham uma estória fantasiosa como plano de fundo), é-nos negado os nomes de todas as personagens presentes no conto. Sabemos quem eram, suas profissões, alguma característica que carregavam, quando todos podiam ver, mas nunca seus nomes. Quando questionados acerca de seus nomes, não é raro que um cego ou outro retorca com um simples “não importa quem sou, agora sou só mais um cego”. A última mulher a ser capaz de ver é ninguém mais que simplesmente “a mulher do médico”. O médico é o oftamologista que examinou aquele que foi o suposto primeiro homem a cegar, quando dirigia seu automóvel no trânsito. Ele também examinou mais das personagens do arco principal: o garotinho estrábico, que, logo no início do confinamento, quer mais nada que não a mãe, a rapariga de óculos escuros (todo o português original, com que a obra foi escrita, permaneceu inalterado), o senhor com um tapa-olho. 
                Estão todos agora confinados ao hospício, todos divididos entre as camaratas. Todos os dias irrompem mais e mais cegos, perdidos, tendo se despido de toda a dignidade, para encontrar um mundo ainda mais indigno: digno de ser chamado inferno. As comidas inicialmente vêm periódicamente, mas logo começa a tornar-se insuficiente para que se alimentem tantas bocas famintas. Os soldados da portaria estão afastados demais para simplesmente permitirem que qualquer um dos cegos se aproxime, seja para reclamar da pouca comida, seja para requisitar um analgésico, para que o coitado que levava uma ferida gangrenada na perna não sucumbisse e morresse na dor. 
                Quando do advento do homem que possui uma arma, que está na companhia dum cego “de verdade”, dos que não enxergam desde que nasceram, o que faz dele um semi-rei, todos se vêem na iminência do advento de um novo regime no hospício, e é o que ocorre. O homem malvado, que tem a arma, requisita toda sorte de pertences valiosos, para só então permitir que alguma da comida prossiga para as camaratas. Ora, as comidas ainda assim se lhes vão em pequenas quantidades, e, se ainda almejam por sobrevivência, devem eles obedecer aos novos tiranos e racionar toda a comida. E esses pertences se vão como pagamento pela comida que é sua por direito.
                A situação apenas piora. As mulheres são estupradas “por sua vontade”, porque se não fossem voluntárias, não haveria mais comida para elas, para o pequeno menino estrábico, para os velhos, para ninguém. Todos sucumbem num mar de secreções, dejetos, excrementos, que só quem é capaz de ver é capaz de evitar, pelo menos quando não se tem alguém que enxergue bem próximo; ainda assim, quase nada, a que ainda vê, é capaz de fazer, porque eles são muitos, e ela é só uma. 
                Somos afrontados pela imagem de uma moral humana, tão repulsiva quanto real, de cegos aproveitando-se da cegueira dos outros, tanto para demarcar poder, quanto para garantir a refeição da noite. Quando se trata de manter o corpo vivo, de tudo somos capazes de fazer – isto é parte do que Saramago quer nos dizer; poucas barreiras há entre o homem despido de dignidade e o homem selvagem, primando por sua própria sobrevivência. Outra coisa que o autor quer nos dizer é que só sobrevivem (a morte de que falo, em detrimento dessa sobrevivência, não é somente a morte física, mas a morte da alma, para que se dê lugar ao animal faminto e descontrolado), afinal, aqueles que continuam unidos, como um só corpo em meio ao desastre do inferno que vai, ao poucos se formando. Este corpo único de vários que se forma é o corpo do arco central: a mulher que ainda vê, o médico, a rapariga dos óculos escuros, o menino estrábico, o velho com o tapa-olho, o primeiro cego e sua mulher. E uma relação de amor se impregna em cada um deles e em todos, uns pelos outros: mas não o amor banal e profano dos que não conhecem toda a bruteza da vida, mas o amor que serve de amurada, para que nenhum deles caia no abismo eterno de estar cego, num mundo tão vasto.
                Depois descobrem eles estar livres para regressar ao mundo que um dia os acolhera: mas veem eles que liberdade é nada mais que uma palavra fora de contexto, quando tudo o que encontram é um mundo abandonado, porque já quase ninguém na superfície da terra é capaz de ver. Tudo o que veem é a luz eterna que os impedem de ver qualquer coisa. Os cegos movem-se por agrupamentos ou sozinhos: os que movem-se sozinhos estão vivos apenas para contrariar o alerta comum, que parece pairar no ar, que diz que não pode haver vida a um. Estão todos a procurar por qualquer comida que tenha restado, por qualquer lugar em que possam passar mais uma noite.
                Os santos da igreja que a mulher que ainda vê visita com o marido estão todos vendados, porque estiveram sempre vendados, e foi alma que se relaciona bem com a verdade que foi capaz de cometer o ato de vendá-los. Porque eles sempre estiveram cegos, e nós estamos por nós mesmos neste mundo. E não apenas os santos estão cegos para nós, como nós estamos cegos para nós mesmos, e para todo o restante das coisas. Estamos cegos, porque passamos a vida a viver como se fôssemos muito mais do que apenas corpos vagantes, tão necessitados de comida, quanto de água, quanto de proximidade daqueles outros que nos aquecem e nos defendem da queda no grande abismo de estar cego, como todos estamos, num mundo, como supracitado, tão vasto.  
                Para não terminar por ofuscar o brilho incomparável da primeira leitura, encerro meu relato por aqui, porque a obra é digna de ser vivida por quem por uma alegoria sobre todo o gênero humano se interessar.                     

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