domingo, 12 de janeiro de 2014

O Vagabundo na Chuva


                Seis letras, começa com v, prevenção de doenças virais e bacterianas, o rapaz falava a si mesmo, como se a descoberta daquele enigma fosse conduzi-lo a qualquer lugar, longe daquela estação cinzenta de trem. O relógio beira às dez horas, mas, para quem não tem para onde voltar, os ponteiros do relógio são nada mais que linhas dançantes, sempre contínuas em seus inacabáveis movimentos. O lugar tinha tanto cheiro da sopa que o vigia preparava para si, alguns metros afastado, quanto da lama que as botas, impermeáveis ou não, dos transeuntes traziam em suas solas. O converseiro começava a diminuir, mas o tamborilar da chuva sobre os telhados dos edifícios vizinhos e sobre a cobertura do próprio prédio da estação ainda faziam questão de atuar sonoramente.
                Estava frio – tanto que o rapaz vestia duas jaquetas, uma por sobre a outra, para que o frio não o fizesse vítima. Antigamente, bem que ele poderia surpreender algum senhor que ia passando para pedi-lo um mísero cigarro, e mais um para o próximo senhor, e mais um para o próximo; o cigarro o mantinha quente. Mas, o fato era que o rapaz havia largado o vício, quando começaram a imprimir e publicar aquelas revistas de teor sério, falando tão mal da tal da nicotina, como se fosse uma espécie de besta do apocalipse, e talvez fosse. Agora, como acontecia com as aranhas, sempre que ouvia a palavra, ou sempre que via um senhor ou senhora a sacar o objetozinho branco e esguio de suas carteiras, sentia algo como uma coceira – coceira de quem está inquieto. Minha senhora, a senhora tem netos? A senhora realmente quer vê-los chorando sobre um túmulo: o seu? Então é bom que deixe que a chuva apague a pequena chama do fumo, antes que a nicotina transforme suas entranhas em cinzas, o rapaz dizia para uma senhorinha dondoca que estava bem próxima, mas dentro de sua própria cabeça.
                O palavras cruzadas do periódico da tarde ainda espera por resolução. Decidiu pular aquela palavra de seis letras. Cinco letras, o que se carrega por penitência, contra a vontade de quem carrega. O rapaz se pôs a pensar mais uma vez, enquanto gotículas de água, que saltitavam de um guarda-chuva, tão negro quanto aquela noite era, de uma moça que passava ao largo, o acometiam. A mocinha o sacudia para obtê-lo enxuto. Ela tinha na boca um tom escuro de batom, cabelos cortados à francesa, pele branca como a neve mais pálida. Uma jaquetinha de couro escuro cobria parte de seu torso, pequenino como o de uma fêmea deve ser. Mas ela não o deu atenção. Passou ao larguíssimo, como se sentisse medo dele. Da boina maltratada, das roupas manchadas e desbotadas, das olheiras tão visíveis – visíveis mesmo sob a tosca iluminação daquela parcela da estação -, ou mesmo medo da sua atitude vagabunda, de sentar-se ali, como se nada tivesse que fazer, numa terça-feira, quando tantos outros ansiavam pelo retorno às suas respectivas casas, para desfrutar de suas tão merecidas (poucas) horas de sono; descanso de gente que trabalha. Fosse o que fosse, ela já ia ao longe, talvez para dormir e sonhar com um rapaz que tivesse com o que se vestir com dignidade.
                Fardo, ele arriscou, o que mais se carrega como penitência, que não um fardo? Acurado. O a da palavra fardo preenchia o espaço da segunda letra da palavra que pulara. Agora o rapaz tinha um _aci_a. Ainda não tinha sequer pista do que poderia ser. Ele fechou o jornal e avançou com os pés por sobre a pequena amurada, que servia para que as crianças não se precipitassem contra a linha de trem. Se o sono viesse, se o sono viesse... O rapaz provavelmente sonharia com as canções; especialmente aquelas que tinham o dom de fazê-lo esperar – e este não era um esperar ruim. Esperar, para que os descasos e os acasos pudessem ser conduzidos, do mais absurdo caos, à ordem; esperar por um trem que pudesse levá-lo, não para o lugar de onde viera, mas para qualquer outro lugar em que não houvesse algumas lembranças. Havia as canções que cobriam seus olhos com um véu de fantasia, também; que fazia olhar para todas aquelas pessoas, descendo avenidas e comprando automóveis, cantando jingle bells e tirando fotos de famílias, de outra maneira. Ou eram eles cegos, ou viam demais. Fossem como fosse, eram os acordes, os solinhos enfeitados de jazz, os suaves sons que os dedos faziam por sobre as teclas limpinhas de um piano, que inundavam seus sonhos mais profundos; e era por essas lembranças, que tinham mais de naturais e sadias que de febris, que ele acreditava ser dotado de alma. Mas sua alma tinha pouca serventia naquele mundo, naquela estação de trem quase deserta, sob aquelas roupas tão maltratadas.
                A estação está para ser fechada, disse um dos funcionários do prédio principal. O senhor espera por alguém? Dormirá por aqui mesmo? Espero por alguém, o rapaz respondeu. Se tivesse chance – e coragem – de explicar, engendraria toda a história de sua espera por si mesmo: um outro rapaz que ele acreditava existir lá no fundo, que não fosse tão preguiçoso e que não estivesse tão contente com tão pouco. É por mim que espero, é por mim.               A chuva não deu trégua; fazia que com o mundo parecesse pequeno, apertado, com todo mundo tentando evitá-la, para não apanhar resfriados, para não molhar seus pertences, suas roupas, seus sapatos, seus cabelos, suas caras pintadas... Eu? Eu não tenho nada disso, o rapaz pensou de pronto, e quis ir lá fora, na chuva, para ter a certeza de que o mundo continuava do mesmo tamanho.
                  Ele nem se deu o trabalho de se despir de nada, o sol da manhã cumpriria seu papel de secá-lo. Saiu e sentiu a chuva a molhá-lo por completo. Um ou outro que passavam pensavam estar vendo um louco, um bêbado, um desconsolado... mas ele era nada mais que um rapaz contente; contente, mesmo que não tivesse um tostão, ou um lugar para onde regressar. Mas o contentamento do rapaz se dava pelo simples fato de que ele estava ali, e estava chovendo, quanta pouca vida! E não passaria pela mais espertas das cabeças que ele era nada mais que um rapaz contente por estar chovendo. Não havia mais pessoas contentes por quase nada pelo mundo, por isso, do estranhamento.
                E, de olhos fechados, enquanto a chuva fazia poças por todos os lugares, e alimentava as pequenas plantas, e matava de frio os pobres mendigos que não haviam conseguido abrigo, o rapaz lembrava-se da imagem da boca delicada da mãe se movendo, para falá-lo com simplicidade, palavras que ele colocaria nas músicas, assim que conseguisse comprar um violão; vírgula por vírgula, parágrafo por parágrafo. Ora, o rapaz, corria agora; não uma carreira apressada, tensa, ansiosa: mas uma nada mais que apenas leve. Ele lembrava-se de quando pensara, numa juventude mais antiga, que poderia ter tantos amigos que perderia as contas, se as tentasse empreender somente com a ajuda dos dedos; ele queria viajar, ter malotes do dinheiro, fazer os passeios maravilhosos e descansar a beber do mais precioso vinho, na companhia da mais delicada das mulheres. Um cão, tão contente quanto o rapaz, agora corria; havia ele também se convidado à brincadeira. E, que engraçado, aquele cão era o único amigo que tinha. E estavam os dois, contentes, sob a chuva. Ele podia contá-lo no dedo, então as coisas eram deveras mais simples. Não havia sequer moedas nos bolsos do rapaz. Ele tinha nada mais nada.
                A vida havia morrido lá fora, porque a chuva a havia assassinado. E o rapaz corria, corria, com o cão a persegui-lo – corria rumo a qualquer que fosse o lugar: o derradeiro e inevitável destino de todos aqueles que tem olhos de ver e pernas de caminhar.      

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