quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Todos Os Céus (Capítulo I)

I

           Glenda acendeu o Marlboro quase sem perceber. Já tinha o cigarro dançando aos próprios lábios antes mesmo que pudesse repreender-se. Havia-se esquecido até mesmo de abrir a janela pra avenida, pra que a fumaça não terminasse por infestar o apartamento todo. Estava tudo errado: o cigarro, a janela fechada... o bebê. O pensamento congelou seu coração por um segundo, mas o maldito só havia parado mesmo pra pegar impulso, porque agora batia a galope, como se prestes a saltar sua garganta afora e escapulir à sua vista a qualquer momento, perambulando e dando rebeldes cambalhotas, por aí, logo em seguida. Entretanto, como ela não era – ou ao menos não considerava a si mesma – colecionadora de erros, decidiu abrir a janela para livrar-se ao menos de um dentre tantos.
            Sugava a fumaça do esguio artefato branco para si, como se aquilo pudesse, de alguma forma, ajudá-la a acalmar-se, a libertar-se do aglomerado de pensamentos tempestuosos, a esquecer. Mas nada se esquece com tal e tanta facilidade. Aquilo ainda roubar-lhe-ia longas noites de sono, ela sabia, e o pensamento das madrugadas trevosas e do seu corpo banhado em suor frio, aliciando-se, revirando-se e remexendo-se através da cama e das horas, foi o responsável pela queda da primeira lágrima. Era mais uma lágrima de raiva que de qualquer espécie de melancolia. Era tudo culpa dele. Tudo. Era quase irracional o montante de dano aquele homem a houvera feito no decorrer de meros oito meses de um relacionamento (doentio). Glenda visualizou o rosto dele à sua frente, trajando aquele sorriso cínico de olhos apertados. Seu punho atingiu em cheio a grade branca que encimava a folha em tom metálico da janela, fazendo-a grunhir de dor, enquanto o cigarro descansava num cinzeiro que ficava sobre um centrinho próximo dali, queimando lentamente - a fumaça escapando para o mundo em meio a sedutores passos duma valsa sensual e perigosa.
            Mas desta vez a culpa não era só do maldito. Por mais que ela tentasse inconscientemente demonizá-lo, tinha também ela sua parcela de culpa, ponto final. Não, ele não a havia violentado nem a induzido de qualquer forma à sorte daquele resultado. Marcos podia ter seus (muitos) defeitos, mas violência, ela sabia, não era um deles. Ele era do tipo de homem que te mata na unha em meio a sutis gestos de mãos, sorrisinhos gentis e palavras doces, nunca içando o tom de voz, nunca levantando um punho ou uma palma... Sempre aquele calmo e estável sorriso invernal, parado no meio dum rosto praticamente impossível de se odiar. Mas ela havia chegado ao extremo do ódio; não era outra coisa, o que sentia quando tocava no nome dele ou quando ele lhe trespassava o pensamento. Maldito bastardo, Glenda pensou, devolvendo o cigarro à boca e deixando-se escorregar através da parede sob o peitoril, cansada demais para manter-se de pé.      

            Um bip no celular denunciou o recebimento duma nova mensagem no Whatsapp. Laura questionava-a acerca do resultado do exame, dizendo estar aflita e preocupada. Acabo de saber que estou completamente fodida, Glenda respondeu-a, atirando furiosamente o celular contra o encosto da poltrona, que ficava alinhada à parede adjacente à janela, logo adiante.
            Vamos lá, não poderia ficar naquele estado. Ele não merecia. Tem de se erguer e decidir o que fazer a seguir com a vida, Glenda disse a si mesma, com uma mão descansada sobre a fronte, num gesto de genuína preocupação. Obrigou-se a deixar os quartos do chão, para isso apoiando-se no assoalho frio com ambas as mãos. Pôs-se de joelhos e pôde ver a cidade lá fora, funcionando em clara e harmoniosa normalidade; bem, ao menos aparentemente. Carros enlouquecidos e sirenes de ambulâncias que perdiam a raridade, quando do fim do crepúsculo, que se aproximava, arrastando-se, enquanto a tarde sangrava.
            Quer dizer que agora havia uma pequena vida crescendo no interior de seu próprio ventre? A ideia acometeu-a como um vento gelado que levantou os pelos das suas costas, da nuca até à espinha. Puta que pariu. Quando ouvia as estórias acerca da estranheza daquela constatação, Glenda pensava tratar-se de simples clichê, como quando dizem “o primeiro beijo a gente nunca esquece”; pois bem, acontece que ela esquecera, sim, e com tanta facilidade que terminara assustada consigo mesmo, pensando na sua própria imagem como a duma pessoa fria. Havia sido o Alberto Guimarães ou o João Castro? Ah, para algumas questões nunca haverá respostas, mesmo. Mas aquilo era tão, mas tão diferente. A sensação era de que a partir de então todo o seu corpo era nada mais do que o envoltório protetor dum embrião viscoso e cinzento, que descansaria cega e confiantemente em seu útero por diversos meses, e então escaparia chorando num dia qualquer, demandando eternamente comida e atenção. Arrepiou-se de novo, esquecendo-se por um momento até mesmo de quem era o pai.
            Nascerá um bebê vermelho, chorão, cheio de necessidades, de rosto quase indistinto, que em poucas semanas será substituído por um tanto menos igual aos demais recém-nascidos, as madeixas de cabelo aparecerão com algumas semanas e, cara, eu tenho indiscutível certeza de que serão da cor de carvão, que nem os daquele maldito filho da puta. Três ou quatro meses depois, surgirão os primeiros dentes e os traços particulares da face já estarão quase perfeitamente definidos no rosto infantil. Então, o nenê vai começar a sorrir e vai apertar os olhos, e se tornará impossível pra mim, odiá-lo; mas será que eu o odiarei secretamente, em alguma parte obscura de mim mesma?
           
Perdida em meio a reflexões e devaneios que a fizeram perder a noção das horas, Glenda apercebeu-se dum pequeno detalhe no seu comportamento diante da notícia que a havia assustado. Em nenhum momento, pois mais ínfimo que fosse, naquelas últimas horas de pensamentos agitados e emoções confusas, ela havia considerado um aborto. Por que não? Pegou-se a si mesmo a mastigar aquela possibilidade. Sim, um aborto seria a saída perfeita pra situação. Era só marcar o dia, aparecer no local marcado, fazer a retirada do embrião e ir-se embora pra casa, pra dar prosseguimento à vida que continuava, não mais tendo que dormir sabendo que cresce dentro de si uma vida iniciada a partir do homem que tanto desgosto lhe despertara, e em tão pouco tempo.
            É, parecia a saída mais cabível praquela tempestade. Mas aquela última reflexão não estava disposta a abandoná-la com tanta facilidade. Por que a demora em optar por um aborto? Ou mesmo em considerá-lo? Tal solução mostrava-se tão adequada para si, que se sentiu estranha por, por tanto tempo, haver contrariado sua própria lógica. Talvez estivesse atordoada e nervosa demais pra pensar e acolher a solução racional. As lembranças de si mesma deixando o consultório com o resultado do exame eram imprecisas e nevoentas, como se lhe houvessem extraído a capacidade de pensar claramente. Manobrara o carro pra fora daquele estacionamento como faria um adolescente com duas semanas de aulas práticas na autoescola. Culpava a si mesma, ao Marcos Aguiar e aos céus pelo infortúnio das novidades. Queria chegar logo a casa, descalçar aqueles sapatos terrivelmente doloridos, tomar um rivotril e jogar-se à cama e ao sono sem sonhos. Mas, por algum motivo, ao chegar ao apartamento, a ideia já se lhe havia escapulido. Talvez porque alguma espécie de lógica coadunada à maturidade houvesse se formado em si, de forma que a ideia de simplesmente dormir e abandonar os problemas espraiados através da sala de estar não lhe pareceu, assim, tão promissora. Afinal, ela era já uma mulher de não menos que vinte e oito, e a solução através da fuga não mais, decerto, apeteceria seu espírito.
            Talvez não havia considerado o aborto de plano porque lhe havia agradado de alguma forma hedionda a ideia da maternidade. Santo Deus. O arrepio de novo. Glenda Moraes dentro de roupas infladas de mulher grávida, os seios inchados e a barriga cheia de estrias; visitas de parentes e chá de bebê. Um berço no seu quarto, um pequeno armário de enxovais; mamadeiras, chupetas, CDs com canções de ninar. A tontura arrebatou-a. Banheiro, ela pensou, mobilizando-se. Erguendo-se completamente desta vez, correu como uma lunática através do corredor, em direção ao vaso sanitário; encarou a água tremeluzente, a pairar no fundo de porcelana. Oops, lá vai.
            Depois de duas grandes torrentes de vômito, a campainha tocou. Ela ergueu-se lentamente, sentindo-se pálida e tonta, confirmou a palidez no espelho sobre a pia, enquanto lavava os resquícios da vomição com água que levava à boca através de mãos em formato de concha. Ainda deu tempo de fazer um breve gargarejo com o enxaguante bucal antes de ir atender a porta. Não precisou nem atender o interfone nem espiar através do olho mágico pra saber que se tratava de Laura. Abriu a porta e baixou os olhos, abrindo passagem pra que a outra mulher entrasse. Não havia ânimo pra cumprimentos ou recepções calorosas.
            Glenda fechou a porta atrás de si, passando o trinco dourado. Quando se voltou, Laura trazia nas mãos uma pilha de sacos de papel. Comida, Glenda soube. Soube, porque era dessa forma que Laura tentava animá-la, quando algum sério problema estava em curso em sua vida. Laura repousou as compras por sobre a mesinha de jantar da sala e moveu-se ao abraço de Glenda.
            - Que vibe errada, amiga – Laura disse, num quase sussurro.
            - Nem me fale – Glenda respondeu, com uma voz distante e cansada.         
            Laura largou-a, recolheu duas latas de Coca-Cola que havia repousado na mesa e dirigiu-se com elas à cozinha, aprumando-as no freezer, logo em seguida.
            - Cara, você acredita que o Sérgio (sim, o aquele meu ex meio bobão) desistiu de arquitetura quase no fim do curso e vai fazer o ENEM? Fiquei chocada, quando soube. E olhe que ele ainda mora com os pais, aos vinte e sete. Pelo visto fiz a escolha certa quando pus um fim naquilo. Já imaginou?! Eu querendo curtir meu final de semana de quase pós-graduada e o infeliz lendo Memórias Póstumas de Brás Cubas no sofá da sala?! Não é pra mim.
            Glenda notou sem grande esforço que, como não era raro, Laura havia transferido o peso da situação para suas próprias costas; assim, conversaria sobre amontoados de coisas aleatórias, com aquela velocidade estonteante que muito admirava a Glenda que a amiga não terminasse por morder a própria língua, dela tirando sangue, em meio àqueles dentes batendo em alta velocidade, para comunicar causos e estórias sem estrutura lógica ou qualquer tipo de correlação entre si ao longo de toda a noite. Isso, se Glenda não desse freio, conduzindo Laura em definitivo ao ponto chave daquele encontro do qual a casualidade passava distante. Laura prosseguia arranjando as coisas quase freneticamente por sobre a mesa de jantar.
            - Sabe quem eu encontrei na padaria usando dreads?
            - Laura – Glenda falou numa voz que era um chamado de volta à realidade.
            - Eu sei – Laura rendeu-se, cabisbaixa. – Então...
            O celular de Laura tocou. Ela tirou-o desajeitadamente da bolsa tiracolo que trazia à cintura e pressionou-o contra a orelha esquerda. Alô, disse. Quando percebeu de quem se tratava, Laura olhou em relance, desconfiada - quase envergonhadamente -, para Glenda, dirigindo-se rapidamente para a janela que agora tudo o que deixava entrar de fora eram luzes, de prédios e carros distantes, que se destacavam no negrume da noite, e correntes de ar meio frias, grande alívio frente à quentura que o dia havia trazido consigo, mais cedo. Dado, Glenda concluiu, recolhendo distraidamente uns pratos e xícaras no armário e os assentando na mesa, fazendo o possível para manter distância dos cochichos privados de Laura, que agora não só cochichava como também quase berrava de vez em quando, quando a paciência se lhe escorria embora.
            Glenda abria um pote de requeijão quando Laura tornou a aproximar-se da mesa, tentando camuflar seu rosto com autoconfiança e alegria inabaláveis, apesar da ciência de Glenda acerca de boa parte dos seus infortúnios pessoais.
            - Quer dizer, então, que serei titia – Laura disse acompanhada dum sorriso deleitoso.
            Por um momento, a força abandonou a mão de Glenda, que deixou a faca carregada de requeijão cair e emporcalhar boa parcela da toalha da mesa. Seus ouvidos não puderam crer no que haviam acabado de ouvir. Seu chão virou água.
            - Quê? – Ela guinchou, num tom estridente de voz.
            - Titia – Laura retrucou inocentemente, sem desfazer o sorriso. – Você está grávida, eu serei titia. Simples; né?
            - Por favor, diga que isso é uma brincadeira de mau gosto, Laura.
            - Espera. O que houve? – Laura pareceu genuinamente intrigada.
            - Você acha mesmo que eu vou ter o filho daquele canalha?
            Laura deixou o sorriso coalhar, enquanto encarava quase perplexa o que ecoara das palavras de Glenda. 
            - Amiga, você não está pensando em... – Laura começou, e foi obstada.
            - Abortar! O que você tem na cabeça, Laura, me diz?! Achou que eu descobriria que estou grávida do homem que me fez tão infeliz e decidiria por manter a gravidez? Pense, minha amiga...
            Laura nada respondeu. Envergonhada, com incredibilidade ainda nos olhos, dirigiu-se ao freezer, pegou uma das latas de Coca-Cola, abriu-a e despejou o refrigerante escuro no interior dum copo. Sentou-se na mesa de jantar, sem dizer palavra, e bebeu metade do líquido em grandes goladas quase sem intervalo.
            - Vai quente mesmo, essa merda – disse, amuada, os olhos cheios d’água por culpa do gás.
            - Laura, escuta – Glenda tentou redimir-se, num tom de voz deveras mais suave, enquanto sentava-se na cadeira que se posicionava de fronte para a amiga. – Não queria ter falado assim. É a pressão da situação. O dia foi tão corrido...
            - Entendo – Laura respondeu, tomando mais um gole de refrigerante, sem levantar os olhos. Encarava o vazio. – Quando vai ser? – perguntou.
            - Não sei, ainda – Glenda respondeu. – Não tive tempo pra pensar direito, ainda.
            - Está de quantas semanas? – Laura continuava com os olhos postos no nada, fazendo perguntas como quem as faria meramente por ocasião da obrigação que as formalidades impõem.
            - Seis semanas – Glenda respondeu, enquanto serpenteava uma faca coberta de patê de peru por sobre a superfície de um pão de fôrma.
            - Hm – Laura fingiu desinteresse. – Olha, tenho que ir.
            - Deixa eu ver se entendi – Glenda começou, repousando a faca por sobre o prato branco e apoiando os cotovelos na superfície da mesa, cruzando as mãos inquisitorialmente diante do próprio queixo. – Está puta comigo porque eu vou abortar esse embrião?! Pior, está puta comigo sabendo quem é o pai do embrião?! Em primeiro lugar, você não tem direito...
            Foi quando Laura se ergueu, bebeu os últimos goles da Coca-Cola e dirigiu-se sem cerimônia à porta do apartamento, sem nem por um instante olhar pra trás. Glenda ergueu-se abruptamente e chamou-a: Laura, e instantaneamente a tontura voltou a tomar conta de si; pensou que dessa vez terminaria por desmaiar, mas o desmaio não veio; foi só com o barulho do copo espatifando-se contra o chão que Laura virou-se pra examinar sua causa.
            - Estou bem, estou bem – disse Glenda, respirando fundo, recompondo-se.
            Laura voltou-se novamente para a porta e removeu a corrente dourada do trinco, livre para sair. Glenda mais nada disse, porque de repente percebeu que não havia nada que dizer. O corpo era dela, a porra do útero era dela; a decisão era dela. Ela estava certa.
            Mas, quando a porta fechou-se delicadamente (Laura não era do tipo que batia portas), o sentimento de profunda solidão abraçou Glenda, que se deixou sentar novamente na cadeira da mesa de jantar. Não era solidão nova; tal solidão tinha a idade da compra daquele apartamento, quando ela havia pensando que estava, enfim, livre para viver a própria vida, transar com quem desse na telha, comprar os próprios sapatos e ver os filmes que quisesse até o pico da madrugada. Porra, tudo ilusão. Agora estava tão distante dos pais e parentes antigos e esquecidos... E era filha única, pra completar. Sentiu-se inteiramente frágil por um momento, como se acabasse de haver tido contato direto com sua pura sensibilidade, a que ela tentara esconder por anos para lá de uma porta de dureza. Porém, uma sensação esquisita borrifou a atmosfera, e logo Glenda percebeu que algo tentava obliterar aquela solidão por inteiro, e, melhor, esse algo parecia estar tendo sorte com o tentame.
            Teve medo de si mesma quando percebeu que talvez sentisse, em algum lugar lá no fundo, que fosse a criança, que crescia, paulatinamente, a cada milionésimo de segundo, dentro de si, talvez, na inconsciência indescritível dos sentimentos túrbidos que a compunham, que estivesse tentando libertá-la inocente e naturalmente daquela escorregadia vida vazia que se formara em seu redor no decorrer daqueles últimos anos, pesados e estranhos.        

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