quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Todos Os Céus (Capítulo II)


 II

               - Pra falar a verdade, não me agradou tanto assim – o velho que se chamava Leopoldo De Fiore asseverou, com uma mão sobre o queixo, para parecer pensativo. – Não sei. Algo está colorido demais. E essa tipografia está muito grande. Podemos melhorar isso?
                - Mas é claro! Carlos, o gerente do departamento criação e arte da DreamPlay respondeu de pronto.
                - É a quinta vez que reformamos a arte, seu De Fiore – Marcos Aguiar disse num tom de voz impaciente, com os dedos da mão direita tamborilando por sobre a extensa mesa da sala de reuniões e apresentações.
                - Sim, eu sei, mas... Não sei. Falta algo. – O velho disse, com os olhos voltados para o banner de apresentação. Depois, levou os olhos aos olhos de Marcos, e eles diziam “amigo, não consigo encontrar o problema, mas um problema; isso há”. Marcos encarou aquela careca polida cheia de sardas, que refletia as luzes do teto quase com a perfeição de um espelho, do engomado dono da De Fiore bebidas e sentiu vontade de martelá-la abaixo, até que o bico do martelo alcançasse a polpa do cérebro burro do maldito. Mas tudo o que fez, afinal, foi exibir um dos seus amigáveis sorrisos.
                - Seu De Fiore – Marcos disse, logrando em êxito na retenção da raiva. – O que, exatamente, o senhor quer na propaganda?
                O velho olhou para um de seus assessores, que lhe devolveu um olhar imóvel e impotente diante da nova recusa. Na imagem impressa no banner, a silhueta de um jovem com fones de ouvido, jeans largos e mochila nas costas, beijava o gargalo da garrafa de refrigerante prazerosamente, enquanto uma centena de imagens coloridas surgia ao seu derredor, como se a bebida o houvesse despertado para um novo mundo mágico, surreal, cheio de prazeres. E, é claro, um skate descansava verticalmente, apoiado entre a ponta do pé e os dedos da mão esquerdos. No background, ondas eufóricas debandavam-se para todos os lados, enquanto um esplêndido sol amarelo brilhava lá no alto, encimando como uma coroa toda a criação. Pouco acima do sol, a arte tipográfica dizia: “Refrigerante De Fiore” e “Entre também nessa vibe”.
                - Acho que encontrei o problema – disse Leopoldo De Fiore com um sorriso altivo, com cara de quem houvesse, finalmente, matado a charada. – Se o sujeito é claramente skatista, por que têm ondas no fundo da imagem?
                Marcos e Carlos entreolharam-se, enquanto o velho Leopoldo sorria com cara de “eu estava certo o tempo todo, vejam”. Foi Marcos quem falou.
                - Mas seu De Fiore, as pessoas vão à praia porque estão com calor. A gente quer colocar a bebida como sinônimo de alívio pra quentura; quer algo mais acurado que uma praia, pra isso? Além do mais, hoje em dia, que tipo de praia não tem ciclovia? Sim, dá pra andar de skate nas ciclovias, também.
                - Não aqui em Serenatas – o velho colocou. – Aliás, nem praia tem aqui. Encontro um defeito novo toda vez que me viro pra esse desenho.
                Ele não falou isso. Não, ele não pode ter falado desenho. Eu devo ter imaginado. Marcos pressionou as unhas contra as palmas das mãos e respirou fundo. Poucos clientes conseguiam leva-lo àquele estado de nervos, e, infelizmente, um deles estava sentado com um meio-sorriso cínico, bem à sua frente.
                - Na arte, o senhor quis dizer – Marcos corrigiu-o polidamente, escondendo a fúria sob leves inspirações e expirações.
                - Marcos – Carlos repreendeu-o. Voltou-se, então, para o velho pé-no-saco. – O que o senhor acharia melhor? Um parque com umas pistas de skate?
                - Pareceria mais convincente, eu acho.
                - Porra, a gente não tá tentando vender skate – Marcos deixou escapar. – O skate foi só um detalhe pequeno.
                - Poxa, Marcos! – Carlos voltou a repreendê-lo, com aquele olhar capaz de murchar jardins inteiros.
                - Você não está tentando vender nada, meu amigo – Leopoldo disse num tom belicoso. – Minha empresa está. E só vai existir contrato com vocês quando os anúncios me agradarem.
                - Mas é claro, senhor De Fiore – Carlos disse, visivelmente envergonhado. – O meu amigo se equivocou na sentença.
                - Parece que não foi só nisso que o seu amigo se equivocou – o velho disse, com os olhos cínicos postados sobre Marcos, engolindo-o.
                - O senhor vai ter o parque com pistas de skates – disse Carlos, tentando apaziguar o clima pesado.
                - É, mas não desenhados pelas minhas mãos – Marcos disse num tom de ponto final, erguendo-se da cadeira e dirigindo-se pra fora daquela maldita sala que não raro lhe provocava claustrofobia.
                Olhares de incredulidade seguiram-no, até que ele fechasse a porta de vidro atrás de si, dirigindo-se sem rodeios à mesa da cafeteira, que ficava ao lado da sala da Alice. Sim, a gostosa da Alice. Nada como uma fodinha naquele exato momento pra lhe abstrair do estresse. Parabéns pro velho, havia mesmo conseguido irritá-lo. Marcos pegou uma das xícaras voltadas para baixo que descansavam na pequena pia da área de recreação e começou a enchê-la de café, somente parando quando o café começou a ameaçar transbordar e sujar o chão. Sentou-se na mesinha redonda que havia no meio da sala e bebeu, tentando recuperar-se do mal estar, balançando freneticamente a perna esquerda.
                Quando estava já na metade da xícara, o Carlos, exatamente como ele havia imaginado, surgiu como um gigante, as costas tolhendo a luz do sol que penetrava através da janelinha de vidro, as mãos apoiadas nas cinturas - cara de quem tinha poucas e boas pra falar.
                - Que merda foi aquela?! – disse, o cenho franzido, os olhos tão grandes quanto ameixas. Marcos tomou um golinho de café antes de falar.
                - Não aconteceu nada demais lá dentro – respondeu. – O velho foi babaca, eu fui babaca de volta.
                - É, mas acontece que um dos dois babacas escreve o cheque do contrato. E acontece também que esse babaca não é você!
                - Mas tudo é dinheiro pra você, não é? – Marcos ergueu-se, seus olhos na mesma altura que os olhos do gerente do maldito departamento. – Entra um dono de empresa qualquer vestindo um Brooks Brothers e fedendo a charuto cubano e você vai logo arregalando esse seu cu!
                - Muito cuidado, amigo – Carlos disse, pronunciando “amigo” hostilmente, como quem pronunciaria o nome do seu pior inimigo.
                - E ele chamou a porra da minha arte de desenho, além de tudoMarcos concluiu, voltando a sentar lentamente, segurando a xícara de café com ambas as mãos, virando-a nos lábios, pra sugar o restante da bebida e os resquícios macilentos de pó de café mal coado.
                - Acho que você tá meio desviado da ideia central da DreamPlay. Sinceramente. Isso aqui não é exposição anual de portfólios e pinturas a óleo sobre lona. Pelo amor de deus, nós somos uma empresa de social media. Não importa se o cliente chama a porcaria da sua arte de desenho ou se chama anime de desenho chinês. A gente tá aqui pra fazer o que eles demandam, pra, então, conseguir o cheque de pagamento no fim do mês e colocar a porra do pão em cima da mesa de casa. Se você tá aqui pra se autopromover ou pra se tornar artista reconhecido, tá no lugar errado.
                Nesse momento, Alice, loira como o nascer do sol, pôs a cabeça pra fora de sua sala, com um olhar de preocupação voltado pra o lugar onde os dois homens batiam boca. Abriu a porta por completo e aproximou-se sobre passos sutis da mesa da área de recreação, que ficava a meros passos de sua própria área de trabalho.
                - O que houve, meninos? – perguntou-os.
                - O senhor Marcos Da Vinci Aguiar ferrou com o nosso contrato, foi isso o que houve. Sem mais De Fiore pra gente. – Carlos respondeu, os dedos sobre as têmporas.
                - Não venha atribuir a culpa só a mim – Marcos rebateu, o dedo indicador da mão direita erguido. – Lembre-se de quem foi o coordenador da porra da arte!
                - É, pena que você não ficou até o fim da reunião pra ver o velho mexer aquela maldita boca murcha dele pra dizer que estava saindo agora mesmo à procura da Establisher! – Carlos retrucou, soltando fumaça pelas narinas.
                - Merda – Marcos vociferou, as duas mãos sobre o couro cabeludo.
                - Merda, mesmo – Carlos concluiu. – Meus parabéns! – E saiu a passos pesados em direção à própria sala. Enfiou-se lá dentro e cerrou-a com um ressentido baque.
                - Ih, parece que a chapa esquentou – Alice disse, com cara de aflita.
                Das mais lindas das mulheres; das menos espertas, também. A chapa esquentou. Exatamente o tipo de coisa que a Alice diria. Ela era do tipo que abria a boca e te fazia querer morrer ou esmagar a cabeça dela contra o chão. Marcos já havia passado uma noite com ela, e havia sido das melhores do ano anterior. Mas, na manhã seguinte, quando Alice começara a falar bobagem por cima de bobagem, dizendo que o tio tinha um cachorro grande e peludo da raça “rôusqui siberiano”, que adoraria ir à Europa conhecer Los Angeles, e outras baboseiras dessa sorte, tudo no que Marcos conseguira pensar fora no silêncio.
                - Sim, a chapa esquentou – ele respondeu-a, secretamente sarcástico. – O que vai fazer hoje à noite? – perguntou-a.
                - Vou sair com meu noivo – Alice respondeu, erguendo as costas da mão esquerda e exibindo a enorme aliança prateada que jazia enfiada no dedo anelar. – E você?
                Sim, Alice agora tinha um noivo; era de se supor. Se ela não quisesse terminar pobre, fazendo planilhas no Excel até os sessenta anos de idade, esse era o momento certo de conseguir um parceiro: a metade da casa dos trinta. Por que era mesmo que Alice tinha uma sala? Ah, é mesmo, ela havia fodido o Silas, o dono da DreamPlay. Ela trabalhava com o setor de contabilidade e parte da administração.
                - Ah, está noiva – Marcos observou, meio desconcertado. – O que o seu noivo faz?
                - É dono de uma concessionária da Chevrolet – Alice respondeu. Bingo, Marcos pensou, mas disse apenas:
                -
Hum, excelente. Boa sorte, então, mais tarde.
                Alice, então, bebeu um copo d’água do frigobar e regressou à própria sala, mexendo aquele rabo enorme lentamente ao longo do corredor. Marcos estava exausto. Não tinha nada mais que fazer ali, por hoje. Ergueu-se e foi pegar suas coisas na sua sala, a primeira do corredor, bem do lado da escada que levava ao térreo e à saída. Jogou a mochila nas costas e saiu para a tarde que fervia, lá fora.
                Sacou o celular do bolso e discou o número dela. Chamou, chamou, chamou. Quase um minuto chamando, e nada. O tratava assim fazia já umas duas semanas. Não atendia as ligações, não respondia suas mensagens de textos. Até mesmo o havia excluído do seu perfil no Facebook. Marcos sentiu-se um otário por haver deixado a situação chegar àquele estágio. Ela havia visto, naquela noite, há exatas duas semanas. Ela estava maluca com um trabalho qualquer do Centro de Serviço Comunitário de Serenatas, procurando por textos de autoajuda, daqueles que se lê nesses eventos clichês de caridade; baixando aquelas músicas melosas, do tipo “Epitáfio”, dos Titãs pra servir de trilha sonora praqueles slides com aquelas imagens de stock do sol se pondo e de famílias felizes se abraçando. O notebook dela tinha o disco rígido corrompido e ela havia pedido o dele emprestado, porque o tempo estava correndo, e o evento já era no dia seguinte, e blá blá.
                Mas, tudo foi pra merda no momento de salvar as imagens que ela havia pesquisado no Google. A pasta de destino, que ficara gravada da última vez que o artifício de salvação de imagem fora usado, chamava-se “vinte e duas” e, dentro da pasta, descansavam vinte e duas imagens de senhoritas diferentes, inteiramente nuas, solenemente de pernas abertas, cheias de uma fome que lhes transparecia nos olhares. Inicialmente, na certa, Glenda havia pensado que se tratavam de simples imagens de atrizes pornô, dessas que se encontram aos milhares, internet afora, sem necessidade de esforços. Ela então pensaria em gargalhar e passar o resto da semana chamando-o de punheteiro, no mínimo. Mas ela havia notado os padrões. Glenda não era burra. Porra, ela havia reconhecido a Alice, que jazia, na foto, por sobre aqueles lençóis brancos, os cabelos derramados sobre o travesseiro, as fartas pernas generosamente afastadas entre si. Todas as fotos sobre a mesma cama. A cama dele, ela soubera. Fotos da Nikon Coolpix P600 dele. Fotos tiradas por ele. Vinte e duas traições.
                Aquilo acontecera por causa da formatação. O computador estava lento já há algum tempo e ele sabia que este andava precisando de uma boa limpeza geral. Antes de formatá-lo, fizera o backup de alguns arquivos importantes para o Google Drive, dentre eles, a pasta com as fotos que haveriam de condená-lo. Após as limpezas de disco, reinstalara o sistema, os programas dos quais precisava e voltara a baixar os arquivos que havia guardado na nuvem virtual (constituídos por fotos e coisas que escrevia, em sua maioria). Por culpa de alguma espécie de maldição, os últimos arquivos a serem salvos foram os que estavam contidos na pasta que tinha por título “vinte e dois”. Então, o barraco estava armado. Ela mandara que ele recolhesse suas porcarias do apartamento dela e desse o fora em cinco minutos. Marcos não protestara. Recolhera suas coisas e fora mesmo embora, aceitando, cabisbaixo, a punição pelos seus crimes. Mas, uma partezinha demoníaca de si dizia que as coisas aconteceriam similarmente às vezes anteriores. Era no que gostava de acreditar.
                Mas, Glenda não telefonara no dia seguinte, nem no seguinte, nem no seguinte. Marcos fora ao apartamento dela, então, no quinto dia subsequente, e fora atendido por Laura, que o alertara polidamente: “Glenda não quer vê-lo. Por favor, vá embora”. Ele não insistira. Fora embora, com a cabeça pesada, pensando que um dia se vingaria daquela parte animal de si, que berrava aos seus ouvidos tão mais alto do que o seu senso moral fazia. A vida seguira, Marcos sentindo-se como se o cerco estivesse se fechando definitivamente para si, como se tivesse deixado escapar por entre os dedos a mulher que escolhera para si, dentre as outras todas.
                Sentou-se num banquinho a caminho da Praça das Trincheiras, chamando a si mesmo idiota, mentalmente. Visualizou sua própria imagem, chegando naquele apartamento sem graça, abrindo a merda de um Cup Noodles e enfiando água fervente lá dentro; mastigando aquela massa com gosto de plástico enquanto via, de pálpebras pesadas, algum programa barato com dublagens horríveis do History Channel. Havia, definitivamente, estragado tudo. Azar no jogo, azar no amor; azar em todo o resto. E era apenas quarta-feira.


                ***

                Despertou na quinta-feira de manhã com latas de cerveja barata espalhadas pelo carpete do quarto, um bafo horroroso de cigarro no ar. Virou-se para o rádio relógio, que marcava 8:32 com os caracteres digitais intensamente vermelhos. Alguém escovava os dentes na pia do seu banheiro. As lembranças da noite, então, lhe estapearam a cara. A moça chamava-se Joana e também fora, na noite anterior a um dos pubs da cidade para conhecer a noite local serenatense. Era bela. Belos seios; bela bunda; belos olhos cor de avelã. Bela, em conjunto. Ela soltou uma risadinha enquanto guardava a escova de dente numa necessaire preta e sutil. Depois, se sentou na beirada da cama e começou a abotoar a blusa, em silêncio.
                O celular de Marcos denunciou a chegada duma nova mensagem de texto. A remetente era verônica, a mãe de Glenda, que morava com o esposo no sudeste.


Não deixe ela abortar! De jeito nenhum!

Dizia a mensagem. Seu corpo inteiro tremeu e o ar lhe escapou à respiração.                                                                 

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